Nossa Voz

O país do futebol protege abusadores dentro e fora de campo

| 15 de abril de 2024

Reportagem: Maria Clara Monteiro / Arte: Alcione Ferreira

As cinco estrelas estampadas na camisa da Seleção Brasileira de Futebol anunciam o orgulho da nação com suas conquistas mundiais no esporte. Mas quando o assunto é segurança de meninas e mulheres, a mesma seleção rasga seus prêmios e mantém vivo o pacto silencioso com o patriarcado, o capitalismo e o machismo.

Nas últimas semanas, assistimos em passante silêncio a liberdade concedida ao jogador Daniel Alves, acusado de estupro na Espanha, por R$ 5,45 milhões. Aguardando em liberdade o julgamento dos recursos, o jogador celebrou sua saída da prisão com uma festa em casa. As pessoas que foram convidadas a se juntarem à comemoração cobriram seus rostos para não serem reconhecidas e, consequentemente, estarem ligados à figura de Alves. No entanto, ao comparecerem assumiram a postura de cúmplices, tanto do acusado quanto do sistema patriarcal que nos domina.  

Esse episódio, infelizmente, não é único no universo do futebol masculino. Ao longo dos anos, conhecemos outro lado desses ídolos e celebridades: o que violenta, assedia e abusa meninas e mulheres. Daniel Alves não foi o primeiro e muito provavelmente não será o último se continuarmos nessa lógica que tratora tantas vidas e torna-se símbolo de inspiração para os meninos de hoje. 

As crianças, expostas a esse estilo de vida, por vezes replicam comportamentos e situações, como explica Luanna Cruz, psicóloga do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social. “Essa inspiração das crianças e adolescentes pelos jogadores aponta o lugar de referência que ocupam para elas. Não só no sentido de classe, ascensão social, ou sair da pobreza, mas principalmente de ter uma vida feliz. Então, acabam sendo esse modelo de comportamento e de estilo de vida, tanto pela ótica de consumo quanto pela ótica de ser. E isso impacta diretamente na construção da subjetividade dessas crianças que aprendem esses valores”, discorre Cruz. “Há o desejo de superação e mudança de vida, e quando os jogadores atingem esse patamar, são captados pelo sistema capitalista, sustentado pela estrutura racista e machista”, complementa. 

“Quando olhamos para os jogadores de futebol, encontramos uma masculinidade tóxica que envolve uma dominação que reverbera nas relações dentro do campo, no esporte e pelos próprios homens em direção às mulheres.”

Luanna Cruz, psicóloga do Cendhec

Às mulheres foi imposta a hipersexualização como única alternativa de se relacionarem com o futebol, o que implica na forma como o esporte é aderido em suas vidas. “A organização cultural estabelece o afastamento das mulheres desse espaço. As meninas que se identificam com o esporte crescem distanciadas da possibilidade de empoderar seu corpo, porque acreditam que não é um lugar para elas. Embora percebamos que, ao longo dos tempos, as mulheres têm ocupado lugares como atletas ou nas torcidas, isso ainda não é tão representativo. Quando olhamos para esse sistema de crenças e ideologias, conseguimos visualizar como a desigualdade de gênero se sustenta nos ideais que perpassam e superam a organização em si do futebol. Ou seja, precisamos reformular a maneira como lidamos com os esportes, principalmente com o futebol, que é, historicamente, um lugar masculino. Um grande ponto seria o fortalecimento de times e campeonatos femininos que não estão presentes nas grandes mídias e possuem pouco ou nenhum patrocínio”, elucida a psicóloga.

Pensando nisso, a plataforma Afrontosas, do Cendhec, que fala sobre gênero e educação, evidenciou que os pés de meninas e mulheres também foram feitos para se meterem em chuteiras. Clique aqui para saber mais. 

“No campo há uma valorização da violência. Diante do amor pelo futebol, por um time, pela defesa de algum valor, é permitido que se xingue, que não se respeite e que seja agressivo. Isso se evidencia mais quando a gente olha para as diferenças de gênero: as mulheres também são colocadas nesse lugar de que podem ser utilizadas como objeto e a serviço dos homens”.

Luanna Cruz, psicóloga do Cendhec

CULTURA DO ESTUPRO

33% responsabilizam a mulher por sofrer estupro. O estudo, encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e realizado pelo Datafolha em 2022, evidenciou que um terço da população brasileira acredita que a culpa de ser violentada recai sobre a mulher.

Retroalimentando a estrutura cultural do estupro, a perspectiva dominante segue na direção que esmaga meninas e mulheres, como indica Luanna Cruz. “É importante pensar de onde a violência vem. Quando olhamos para nossa história, percebemos que o Brasil foi fundado por estupro, a partir da invasão colonial dos europeus e do massacre indígena. Diante disso, precisamos investir em formas de conscientização, de informação e de educação, visando a mudança cultural que vem a partir de políticas públicas”, atesta. 

Ainda de acordo com informações da FBSP, são cerca de 425 mil meninas e mulheres que sofreram violência sexual nos primeiros meses de 2023. À vista disso, entende-se a alarmante posição que o Brasil ocupa quando se trata do assunto. 

Para esses homens, tudo segue normal. Mas como ficam as mulheres?

“A situação de violência não pode definir a vida dessa pessoa. Ela foi vítima, mas não significa dizer que será vítima para sempre. Por isso é essencial não duvidar ou questionar o que se sentiu. Lidar com a violência é acolher o processo pós-traumático, criar rede de apoio e fortalecer a confiança em si e nos outros”, afirma Luanna Cruz.

Abaixo, você conhece outros casos emblemáticos de jogadores que violentaram mulheres:

O caso Bruno Fernandes comoveu o país e ganhou notoriedade devido a brutalidade do crime. O ex-goleiro dos times do Atlético e Flamengo foi condenado a 22 anos de prisão pela morte de Eliza Samúdio, modelo e mãe do seu filho Bruninho. O corpo dela nunca foi encontrado. 

A data em que Bruno recebeu o resultado da decisão judicial era 08 de março de 2013, considerado o Dia Internacional da Mulher. Mas Eliza não estava lá para lutar pelos seus direitos, tampouco foi validada quando denunciou as agressões e ameaças que sofreu. 

Dois anos depois, a lei do feminicídio foi instaurada no Brasil. Em 2017, a justiça concedeu o habeas corpus a Bruno. Desde então, foi recontratado por diversos times para continuar seu antigo ofício. Para Bruno, a vida nunca parou. 

“Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu”, esbravejou Robinho em conversa com um amigo por telefone. O diálogo foi interceptado pela Justiça italiana após denúncia de violência sexual em janeiro de 2013.

Na época, a vítima teria ido até a boate Sio Café, em Milão, para comemorar seu aniversário de 23 anos. O que ela não sabia era que esse dia estaria marcado em sua vida para sempre.

O ex-ídolo foi condenado a nove anos de prisão por estupro coletivo, junto com mais cinco brasileiros. Aguardou em liberdade o esgotamento de todos os recursos judiciais e agora cumpre a pena em uma penitenciária de Tremembé (SP).

O atacante da seleção de cinco estrelas foi acusado de estupro em junho de 2019, após denúncia de modelo brasileira. Para se defender, Neymar publicou, em seu perfil no Instagram, trechos de conversas e fotos de nudez da mulher. Além do indício de agressão, passou a responder pelo crime cibernético, pois expor fotos íntimas na internet é crime desde 2018. 

Por falta de provas e depoimentos conflitantes, o caso foi arquivado. A estrela do  Al-Hilal, time da Arábia Saudita, segue emplacando gols – nem sempre a favor do que se toma como correto.

Escândalo de Berna. Assim ficou conhecido o caso em que Cuca esteve envolvido. Em 1987, ainda jogador do Grêmio, participou de uma excursão com o clube na Europa. Lá, Cuca e mais três brasileiros teriam estuprado uma adolescente de 13 anos. 

Com o pagamento da fiança, os jogadores voltaram para o Brasil como heróis. Dois anos depois, em 1989, foram julgados e condenados. Em 2023, o caso foi reaberto e o Tribunal de Berna anulou a sentença.

Durante essas décadas, Cuca não deixou de atuar como técnico de clubes de futebol. 

Agressão física, violência doméstica e tentativa de abuso sexual. É o que denunciam a ex-namorada de Antony e mais duas mulheres brasileiras. 

Jogador da ponta-direita do clube Manchester United, Antony coleciona acusações na Inglaterra e no Brasil. Mas isso, claro, não foi empecilho para que fosse reintegrado ao time. O caso segue sem desfecho judicial.

(Falta de) responsabilização 

09/03/2015. Nessa data entrava em vigor a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15), definida pelo assassinato de mulheres por serem mulheres, envolvendo violências doméstica, familiar ou sexual. 

Atualmente, o Brasil carrega o título de quinta maior taxa de feminicídio do mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número chega a quase 5 para cada 100 mil mulheres. 

Para Juliana Accioly, advogada popular e coordenadora de projeto no Cendhec, dar visibilidade aos números é uma maneira de formar novas políticas. “Isso impacta na forma de enfrentamento à violência contra a mulher, mas é importante destacar que mulheres trans também entram nessa perspectiva, assim como é preciso ser feito um recorte de raça”, incide. 

As violações não são raras, mas a real responsabilização dos culpados, sim. Apegados na certeza da impunidade, homens seguem livres e ocupando lugares de prestígio na sociedade patriarcal e misógina. A grande questão que orbita é: de que forma os sistemas protegem essas meninas e mulheres?

“Temos a Lei da Escuta Protegida, mas, também, a Lei Henry Borel (14.344/2022), que envolvem o recorte de gênero. Mas essa reflexão sobre o gênero não está presente nos mecanismos ou na legislação de proteção a meninas; sempre são  utilizados os recursos de proteção a mulheres. Então, precisamos refletir sobre o diálogo interseccional entre gênero, classe e raça para eficácia dessas políticas, especialmente para as crianças e adolescentes”, garante a advogada.

A preocupação de Accioly é assegurada pelo crescente número de estupro entre meninas de até 14 anos. A violação cresceu quase 15% em relação ao ano anterior, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Isso acarreta em vidas e histórias manchadas pela coalizão que rodeia o mundo, mantendo meninas reféns desse sistema que agride, humilha e abusa. 

“A ideia de que um homem pode estuprar uma mulher não vai sair da sua mente porque ele foi responsabilizado. Mas quando temos uma real responsabilização, as vítimas se tornam mais empoderadas, na medida em que são ouvidas. É um processo complexo de ser creditada em todos os momentos.”

Juliana Accioly, advogada do Cendhec

Episódios como esses refletem a cultura machista e capitalista que domina o mundo e ainda prevalece, de forma intensa, no esporte. Por isso, reivindicar os direitos das mulheres é lutar pela liberdade, equidade e segurança para que a dignidade seja, finalmente, protagonista de todas as ações, especialmente no futebol.

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