Em agosto de 2021, em pleno pico da Pandemia Covid 19, o Cendhec , a partir do site Afrontosas, publicou a reportagem “Isso nunca foi brincadeira de casinha” sobre como o trabalho doméstico e de cuidados afeta a vida e a educação de meninas e mulheres de diferentes gerações. Passados dois anos desde a publicação da matéria, que trouxe dados de pesquisas e dossiês acerca do tema, voltamos a pautar o assunto, insistimos em discuti-lo, problematizá-lo e trazê-lo à tona como forma de retirar da invisibilidade e da cultura de normalização um problema que só reforça as desigualdades de gênero no mundo, particularmente no Brasil.
Recente pesquisa conduzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), intitulada “Gênero é o que importa: determinantes do trabalho doméstico não remunerado no Brasil”, destaca a extensão das desigualdades estruturais enfrentadas pelas mulheres no país. Os dados revelam que, simplesmente por serem mulheres, elas já dedicam 11 horas a mais semanalmente a atividades de trabalho doméstico não remunerado em comparação com os homens.
O estudo destaca ainda que a presença de crianças pequenas na família duplica o impacto nas jornadas femininas. À medida que os filhos crescem, a sobrecarga diminui, sendo a adolescência um período que alivia as responsabilidades tanto das mães quanto dos pais. Porém, apenas as meninas entre 15 e 18 anos contribuem significativamente para essa redução de sobrecarga sobre suas mães e avós.
No ano de 2022, de acordo com a Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílio Contínua – PNAD, a partir dos dados do IBGE, a média de horas semanais dedicadas pela população com 14 anos ou mais às atividades domésticas e/ou cuidado de pessoas foi de 17 horas. Esse tempo era distribuído de maneira bastante desigual entre os gêneros, com as meninas/mulheres dedicando, em média, 21,3 horas semanais e os homens/meninos, 11,7 horas.
Outro dado importante é em relação ao recorte de raça: são as mulheres/meninas pretas e pardas que assumem o maior percentual de dedicação aos trabalhos domésticos e de cuidados não remunerados, com 92,7% e 91,9% respectivamente.
Pesquisa do Cendhec
Em 2022 O Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec) apresentou os primeiros resultados de pesquisa sobre desigualdades de gênero no ambiente escolar. O estudo, que contou com a participação de 438 estudantes do ensino fundamental II da rede pública municipal nas cidades de Igarassu, Recife e Camaragibe, além de 36 adolescentes e jovens mulheres em situação de evasão escolar, apontou que 80% das mães dessas adolescentes é que são responsáveis pelos trabalhos domésticos e de cuidados em casa e 69% das meninas realizam essas tarefas juntamente com suas mães e avós. Juntando pais/avôs/padrastos e irmãos do mesmo núcleo familiar o percentual de participação masculina nas tarefas domésticas e de cuidados atingiu apenas 18%.
O Ipea também revela que a presença de outras figuras adultas na casa, especialmente mulheres, contribui para reduzir ou mesmo “blindar” a participação masculina no trabalho doméstico. No entanto, quando há idosos acima de 80 anos, as mulheres enfrentam, em média, 3,5 horas adicionais de trabalho por semana, enquanto para os homens, essa presença não influencia a rotina.
De tema de redação à necessidade de implementação de políticas públicas
O Enem 2023 trouxe à tona a discussão sobre a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres no Brasil. O tema da redação, “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”, reflete a urgência em abordar essa questão. Um mês antes a Justiça do Trabalho também se envolveu nesse debate, promovendo o evento “Ver o Invisível – Seminário de Trabalho Doméstico e de Cuidado”, jogando luz ao tema onde tarefas domésticas e de cuidados são predominantemente desempenhadas por mulheres, principalmente mulheres negras e periféricas.
Em outubro, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) aprovou a resolução que institui o Programa de Equidade, Raça, Gênero e Diversidade da Justiça do Trabalho. Coordenado pela ministra do Tribunal Superior do Trabalho Kátia Arruda, o programa amplia o escopo de atuação institucional, visando não apenas os processos judiciais, mas também a qualificação e a formação para lidar com as desigualdades de gênero e raça no ambiente de trabalho.
A persistência da sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados sobre as mulheres, destacada pelo Cendhec, encontra eco nos números do Ipea, reforçando a necessidade urgente de uma mudança estrutural. Os dados do Enem 2023 e as iniciativas da Justiça do Trabalho indicam justamente um movimento em direção ao enfrentamento à essa invisibilidade de gênero que atravessa gerações.
Em face desses esforços, seja em pautar o tema, no diálogo ou na implementação de políticas públicas que desafiem as normas tradicionais e contribuam para uma sociedade equitativa, estamos também encarando um desafio ainda maior: romper com a estrutura patriarcal, pavimentando o caminho para uma transformação profunda, que reconheça e valorize o papel fundamental das mulheres na construção da sociedade.