Toda Olimpíada tem cenas marcantes, com densidades emocionais fortes, sejam pelas reações de esforços além do comum, sejam pelas expressões de dor, superação, alegria, raiva ou frustração visíveis no desempenho de cada atleta. Limite é uma palavra cujo significado é feito para superar e o lugar mais alto do pódio sempre foi visto como a única alegria possível.
Porém, o que chamou atenção nas Olimpíadas de Paris 2024, foi o grau de maturidade das jovens atletas negras brasileiras encarando as competições não só com altíssimo preparo físico mas também emocional para enfrentar desafios como machismo, misoginia, racismo e discursos de ódio. Uma combinação que deixa uma lição importante para as próximas competições: investir em atletas passa necessariamente pela priorização de seu estado mental antes, durante e pós torneios.
“Faço terapia duas vezes vez por semana, não só para entender minha vida profissional, mas entender também minha vida pessoal, que é muito importante. Até porque sou uma adolescente ainda, tenho 16 anos. E tudo isso que está acontecendo para mim eu nunca imaginei e me sinto muito feliz”. A frase é de Rayssa Leal, a “fadinha” do skate e medalhista olímpica. A adolescente carrega consigo as dores e alegrias de ser representante de sua geração como atleta de alta performance num esporte que até bem pouco tempo atrás era marginalizado nos grandes centros urbanos. Rayssa derrubou vários mitos que orbitavam a modalidade: se antes o skate era visto como brincadeira de menino, hoje é cobiçado e largamente reivindicado pelas meninas, sem falar que Leal elevou o status desse esporte de origem urbana para figurar entre as modalidades que melhor tem representado o Brasil no mundo. Vale lembrar que outra mulher, Luíza Erundina, foi responsável por retirar o skate da sombra do preconceito ao incluí-lo como prática desportiva, isso porque em 1988, quando era prefeita de São Paulo, derrubou o veto do seu antecessor, Jânio Quadros, que havia proibido a prática do esporte nas ruas da capital.
A preocupação e consequente investimento em saúde emocional de atletas olímpicas/os tomou mais força durante as Olimpíadas de Tóquio em 2020 quando vários atletas passaram por problemas mentais que tiveram consequências negativas sobre suas performances. O exemplo mais emblemático foi o da ginasta Simone Biles, que retirou-se da competição para cuidar de sua saúde emocional. Foi um período difícil para a atleta negra estadunidense, que este ano, fortalecida pelo tratamento teve uma de suas melhores performances desde o início da carreira, conquistando duas medalhas de ouro e uma de prata.
Aos 25 anos, a ginasta brasileira Rebeca Andrade, a atleta com mais medalhas conquistadas para o Brasil, possui um discurso propositivo e amoroso, utilizando a comunicação não violenta como chave para suas interações, sejam elas dentro ou fora das competições. De certa forma isso a blinda de especulações e pressões frente às suas adversárias. Quando perguntada sobre suas conversas com Biles, sua principal oponente da ginástica artística, ela desarma o repórter: “Ah, ela joga com as armas dela e eu com as minhas, ué”, e finaliza com um sorriso leve. Em outra ocasião, quando indagada sobre o que pensava momentos antes de uma prova, foi surpreendente e desarmou as expectativas do entrevistador: “Ah, eu tava viajando na maionese, eu fico pensando nas receitas que eu quero fazer quando voltar pro Brasil. Eu salvo um monte de receita e não faço nenhuma”. Depois de uma dessa ou o jornalista entra na brincadeira ou … entra na brincadeira! não há como tentar deixar Rebeca em situações tensas. Duas coisas importantes a jovem negra nos ensina: cravar ao mesmo tempo uma ótima combinação de respostas leves com flics e Tsukaharas grupados.
Já Bia Souza, 26, nosso primeiro ouro na edição das Olimpíadas de Paris, reconhece a importância do acompanhamento psicológico para performar bem nas competições, não só do ponto de vista físico. Em entrevista ao siteAlma Preta a judoca destacou a condição mental para o resultado de seu desempenho: “A parte mental foi fundamental. Se a gente estiver com a mente saudável e equilibrada, a gente consegue se manter positivo, se manter para cima. Uma mente saudável é um corpo saudável. A busca desse equilíbrio e me manter positiva foi o que me trouxe aqui preparada.”
Enfrentamento ao Racismo e ao Discurso de Ódio
Que o diga Rafaela Silva, judoca de 32 anos, que integrou juntamente com Bia Souza a equipe da modalidade que representou o Brasil nas Olimpíadas de Paris e conquistou o bronze na categoria equipe. Rafa passou por momentos difíceis nos jogos de Londres em 2012, sofreu com pressões, questionamentos sobre sua performance no tatame, e crime de racismo, tudo isso combinado levou a atleta, na época com 20 anos, a apresentar um quadro grave de depressão, a ponto de expressar ideias su1cíd4s. Foi aí que entrou a figura de Nell Salgado, psicóloga que acompanhou a atleta no período mais difícil de sua vida. Como resultado, em 2016, nas Olimpíadas do Rio veio a redenção: Rafaela, que iniciara nos jogos não sendo uma das favoritas, conquistou a medalha de ouro para o Brasil. Em entrevista para a Agência Brasil, sobre as ofensas que havia recebido no passado foi empática e ao mesmo tempo objetiva na sua resposta: “Não precisa de mensagem, a medalha já diz tudo. Não é a cor ou o dinheiro que faz você conquistar uma medalha. É só a vontade, a garra e a determinação”, enfatizou.
Parte da pressão negativa sentida pelas atletas vem das redes sociais. Com a fácil disseminação do discurso de ódio em ambientes virtuais, que facilitam o anonimato e alcance massivo desse tipo de comunicação. Um exemplo disso foi o que aconteceu com a dupla Duda e Ana patrícia, que conquistaram esse ano a medalha de ouro na modalidade vôlei de praia. Emocionada, Ana Patrícia desabafou para o público o que passou nos anos anteriores sobre comentários de internautas a respeito de sua performance na Olimpíada de Tóquio, em 2020: ” É até difícil de falar algo nesse momento, estou tentando processar ainda. (…) Eu queria aproveitar agora e dizer que, depois de Toquio-2020, eu recebi tanta mensagem de julgamento, de ódio, de pessoas que queriam que eu desistisse. Mas eu queria agradecer a muitas pessoas, a Deus e principalmente a mim mesma. Eu acho que eu mereci viver isso daqui com a Duda. Muita gente fala muita coisa. Por favor, agora quando forem falar, falem também que a gente deu o sangue para sermos campeãs olímpicas”, afirmou a jogadora de 26 anos à Globo.