Nos últimos dez anos, o Brasil vivenciou uma verdadeira montanha-russa na luta contra a fome. De referência mundial no enfrentamento às desigualdades provocadas pela insegurança alimentar à descida vertiginosa ao ranking do mapa mundial da fome. Os números desse caos continuam a afetar profundamente a educação no país. Relatórios recentes, incluindo “Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil” da rede PENSAN, “A Educação Brasileira em 2022 – A voz de Adolescentes”, do UNICEF e “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI)” da FAO, revelam um quadro preocupante onde um dos maiores obstáculos para reverter essa situação é o tempo. Uma geração inteira pode ter seu futuro educacional impactado de forma profunda e irreversível devido aos retrocessos políticos e sociais vivenciados pelo Brasil nos últimos anos, especialmente após o golpe de 2016 que alavancou a extrema direita ao poder.
Brasil e o Mapa da Fome: Uma Cronologia
2012: Nesse ano, o Brasil celebrava sua saída do Mapa da Fome da ONU, devido a implantação de programas sociais como o “Bolsa Família”, “Minha casa, minha vida” e esforços para melhorar a segurança alimentar e nutricional para famílias de baixa renda com até um salário mínimo. A fome, em seu estado mais agudo, parecia ter sido vencida.
2014: Os dados de segurança alimentar ainda eram positivos, mas preocupações quanto à distribuição dos recursos começaram a surgir. Melhorar os programas já implantados foi uma das metas na época.
2016: Com o golpe político que destituiu a presidenta Dila Roussef do comando do poder executivo no país, as políticas públicas em prol dos mais vulnerabilizados começa a ruir.
2018: O país enfrentou uma recessão econômica e instabilidade política com a ascensão da extrema direita no poder. Os primeiros sinais de aumento da insegurança alimentar começaram a surgir, refletindo uma economia enfraquecida.
2020: A pandemia da Covid-19 desencadeou uma crise sanitária e econômica e acentuou ainda mais a instabilidade vivenciada pelo Brasil com o governo de extrema direita. O relatório da PENSAN destacou um aumento acentuado na insegurança alimentar, atingindo 59,4% dos lares brasileiros em 2020.
2021: A FAO, em seu relatório SOFI, apontou que, em 2020, a prevalência da subalimentação no Brasil subiu para 9,7% da população, marcando um retorno em escala preocupante ao Mapa da Fome.
Um golpe na pátria educadora: a fome afetando estudantes em todo Brasil
Nesse contexto, a educação sofreu golpes significativos. Crianças e jovens que passam fome têm dificuldade em se concentrar nas aulas e em aprender. A falta de alimentação adequada compromete o desenvolvimento cognitivo, o que, por sua vez, prejudica seu desempenho escolar. As crianças que enfrentam a fome têm maiores chances de abandonar a escola em busca de trabalho ou simplesmente por não conseguirem acompanhar seus colegas.
O relatório da Pensan revelou que, em 2020, aproximadamente 43% dos estudantes brasileiros enfrentaram insegurança alimentar em algum momento, afetando negativamente seu desempenho escolar.
Em famílias com insegurança alimentar, a taxa de abandono escolar é 47%. A fome tem um efeito devastador no acesso à educação e na qualidade do aprendizado.
A FAO, em seu relatório global, enfatizou a relação intrínseca entre a segurança alimentar e a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, incluindo a educação. A falta de acesso a alimentos nutritivos prejudica diretamente o desenvolvimento cognitivo e o potencial educacional das crianças e jovens.
O estudo “A Educação Brasileira em 2022 – A voz de Adolescentes”, conduzido pelo Ipec em colaboração com o UNICEF, trouxe à tona que aproximadamente 2 milhões de crianças e adolescentes com idades entre 11 e 19 anos, que ainda não haviam concluído a educação básica, estavam em situação de evasão escolar no Brasil. A pesquisa, realizada em agosto de 2022, ouviu crianças e adolescentes de todas as regiões do país, revelando que a exclusão escolar afeta sobretudo os mais vulneráveis. Dos entrevistados, 11% não estão frequentando a escola, com destaque para uma disparidade significativa entre diferentes classes sociais: enquanto nas classes A e B esse percentual é de 4%, nas classes D e E chega a 17%, ou seja, quatro vezes maior. Quanto mais vulnerável na pirâmide social mais suscetível a evasão escolar devido à miséria sob forma da fome e escassez de recursos básicos.
Entre os que deixaram de frequentar a escola, 48% alegaram terem feito isso devido à necessidade de trabalhar, uma vez que suas famílias estavam em situação de pobreza extrema. Dificuldades de aprendizado também são um fator crítico, com 30% mencionando problemas para conseguir acompanhar as explicações e atividades escolares. Já 28% afirmaram ter que cuidar de familiares. Outro fator mencionado inclui a falta de transporte (18%). Todos esses percentuais podem ser entendidos como consequências diretas ligadas a pobreza e a subnutrição.
Corrida contra o tempo: erradicar a fome é pra ontem
No início de setembro o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que institui o Plano Brasil Sem Fome. A iniciativa tem como objetivo a erradicação da fome e a promoção da segurança alimentar no país através de uma articulação entre estados, municípios, Distrito Federal, União e Sociedade Civil, num esforço para fortalecer o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).
São três os eixos que estruturam o Plano Brasil Sem Fome:
- Acesso à renda, redução da pobreza e promoção da cidadania;
- Alimentação adequada e saudável, da produção ao consumo;
- Mobilização para o combate à Fome
São mais de 100 metas propostas pelos 24 ministérios que compõem, de forma articulada, o plano. Wellington Dias, ministro do Desenvolvimento e Assistência Social afirmou que “O país sofreu muito nos últimos três anos pela falta de cuidado e atenção com os mais pobres. Se tornou comum ver pessoas passando fome, na fila por ossos e catando comida no lixo para se alimentar. Isso foi a quebra e interrupção de um trabalho iniciado pelo presidente Lula em seus primeiros governos e que trouxe grandes avanços nesta área“. destacou.
Para Rafael Zavala, representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) no Brasil, será difícil atingir a meta de acabar com a fome no mundo até 2030. “Além dos problemas de saúde causados pela pandemia globalmente, o mundo enfrenta dois grandes desafios: a fome e a má nutrição. Um em cada dez pessoas no mundo passa fome”. Porém, em relação ao Brasil Zavala acredita que com o recente retorno de um governo democrático há maiores chances do país reverter o quadro que foi desenhado durante os últimos anos: “O caso do Brasil é diferente, graças as políticas publicas fortalecidas recentemente e à gigante produção alimentar, estamos certos de que o país irá sair novamente do mapa da fome, sem dúvidas”, enfatizou.