Texto: Lenne Ferreira | Arte: Alcione Ferreira
A falta de representatividade na política brasileira está sentada nas poltronas das câmaras municipais e casas legislativas do Brasil. Homens brancos ocupam a esmagadora maioria dos assentos dos representantes eleitos pela população em um país cuja maioria é negra e feminina. Marcadores como raça e gênero ficam à margem quando observamos a preferência do eleitorado brasileiro. Mulheres negras, pessoas indígenas, quilombolas ou LGBTQIA+ são minoria nas casas legislativas e no poder executivo das cidades e estados, que não representam um país com dimensão continental, formado por identidades tão diversas.
Esse retrato foi melhor evidenciado no Relatório “Desigualdades de Gênero e Raça na Política Brasileira” organizado pela Oxfam Brasil em parceria com o Instituto Alziras a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O levantamento mostra que, embora representem a maioria da população brasileira e tenham mais formação do que os candidatos homens, as mulheres são menos de 14% das candidaturas no poder executivo municipal do país. Nas duas últimas eleições (2016 e 2020), apenas duas capitais brasileiras elegeram prefeitas: Boa Vista (RR) em 2016 e Palmas (TO) em 2020. Isso ocorreu apesar de mulheres (todas brancas) terem disputado o segundo turno em cinco capitais no último pleito. Mais da metade dos municípios do país não contou com a presença de mulheres na disputa para o poder executivo, principalmente as cidades de menor porte, conforme demonstram dados do relatório.
Quando se aplica o recorte racial, os números levantados demonstram que mulheres brancas aparecem com maior expressão. Elas correspondem a 25% da população assim como a população feminina negra, mas governam em 8% dos municípios, enquanto as negras só governam em 4%. Apesar disso, o relatório mostra que houveram avanços entre as eleições de 2016 e 2020. Em 2016, 177 municípios (3,2%) eram governados por mulheres negras. Em 2020, esse dado passou para 211 cidades (3,8%). Apesar de parecer pouco em termos de pontos percentuais, a variação significa uma taxa de crescimento de 20% em relação ao pleito anterior.
O relatório comprova o que já vem sendo denunciado pelos movimentos de mulheres negras há alguns anos: a ausência de negritude nos espaços de poder. Embora excluídas da política institucional, Piedade Marques, integrante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco (RMNPE) observa que essa realidade não anula a importância e participação delas na construção do país. “Política, para nós, é uma construção para além dos espaços institucionais da perspectiva dessa democracia representativa dos três poderes. Pensar política é pensar nas relações do que se constroem dos acordos e direitos. Se a gente pensar política de forma mais ampla a gente consegue compreender o quanto nós, mulheres negras, construímos uma forma coletiva de pensar”.
Piedade pontua que um projeto de país democrático não pode acontecer sem a presença e participação de quem está na base da pirâmide social. “Esse lugar de representação institucional é importante porque garante que questões estruturais da sociedade sejam consideradas. Temos as mulheres negras como base e, se estamos nessa base, conseguimos mudar a chave, mudar a estrutura e trazer a vida para a população geral porque as mulheres negras levam para esses espaços o confronto das contradições porque são elas que são preteridas por serem os elementos que alteram o estabelecido”. Para ajudar a promover a presença de mulheres negras nos espaços de decisão, a RMNPE desenvolve a campanha “Eu voto em Negra”, em parceria com a Casa da Mulher do Nordeste.
O cenário tem sido observado e acompanhado por diversas organizações. Em 2020 e 2021, o projeto “Enegrecer a Política” publicou dossiês com dados sobre as eleições de 2016 e 2020, uma ação pioneira no Brasil. A iniciativa é composta por sete organizações da sociedade civil brasileiras: Observatório Feminista do Nordeste, Bigu Comunicativismo, Blogueiras Negras, Movimento de Mulheres do Campo e da Cidade, Mulheres Negras Decidem, Fórum Marielles e Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas. O objetivo principal é construir narrativas acerca da participação política de pessoas negras nos espaços de poder com foco no Norte e Nordeste. Pesquisa, Articulação e Comunicação são os três pilares que norteiam as ações do projeto.
“A partir do que identificamos na pesquisa, a gente pôde direcionar nosso campo de incidência política nos territórios por meio de ações como as ‘Esquentas’, que foram articulações com movimentos sociais locais no Recife, Belém e Bahia para colocar na pauta pública essa discussão sobre participação política das pessoas negras. Realizamos um encontro nacional de candidaturas negras para fomentar espaços de troca, compartilhamento, dos desafios dos movimentos sociais em dialogar com essas candidaturas”, explica Marília Gomes, que é socióloga, pesquisadora e educadora popular. Marília integra o Observatório Feminista do Nordeste e Enegrecer A Política. Ela conta que, em 2022, o foco do projeto é dialogar com os/as eleitores/as. Queremos entender quais são as motivações que influenciam no voto.
Marília chama atenção para um ponto crucial: Não basta apenas representatividade. É preciso ter pessoas comprometidas com as pautas dos Direitos Humanos e com a agenda do campo progressista. “Analisando os dados do Nordeste, percebemos que, atualmente, só temos 5 mulheres negras ocupando mandatos nas câmaras legislativas. Mas, efetivamente, são dois mandatos porque quatro dessas mulheres negras estão em um mandato coletivo, que são as Juntas aqui de Pernambuco. É grave o que esses dados nos mostram e nos coloca o desafio de como a gente romper com esses entraves que impedem pessoas negras de se elegerem”, conclui.
Pesquisadora sobre participação política e violência de gênero e raça, Ingrid Farias avalia que a produção de dados sobre este cenário é fundamental para que a sociedade reflita sobre os impactos desse processo de baixa representatividade das mulheres negras e indígenas na política. A ativista é integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), da Coalizão Negra por Direitos e coordenadora de formação do Instituto Update Brasil. Ela observa que as violências que atingem mulheres perpassam diversos níveis.
“São diversos os fatores que contribuem com esse cenário, mas, nos últimos tempos o movimento feminista, as próprias pesquisadoras do campo sobre participação política tem debatido o fator violência política como principal fator para essa questão. Mas não apenas violência política em si, mas com o recorte de gênero e raça. A violência política é desde o partido que não consegue aceitar o fato que nem sempre as mulheres negras estão dispostas a construir instituições burocratizadas, que reproduzem violências”, pontua ela, que também é uma co fundadora do Observatório Feminista do Nordeste.
As mulheres negras ocupam menos de 20% das cadeiras em 90% das câmaras municipais brasileiras – ou seja, 4.983 cidades. Além de enfrentarem um sistema desigual, elas também sofrem violências como tentativas de silenciamento e deslegitimação e chegam a tomar forma de agressões como ocorreu com a prefeita de Cachoeira, cidade do recôncavo da Bahia, Eliana Gonzaga de Jesus (Republicanos), de 52 anos, que denunciou ter recebido ameaças de morte antes e depois de assumir o mandato.
Para Ingrid Farias, “a violência política de gênero e raça começa desde os espaços privados até o espaço público”. “Dentro de casa, as mulheres são desencentivadas pelos seus companheiros e familiares a não se estarem nesses espaços e não se tornarem uma figura pública e não se colocarem como uma representação para uma comunidade, cidade e estado. Essa violência política vem degradando um processo que desencadeia vários momentos e vários ataques e estratégias para impedir que essas mulheres consigam se consolidar nesses espaços”, pontua.
O demarcador racial também atua invisibilizando casos de violência política contra mulheres negras, como ressalta Ingrid. “Quando as violências acontecem com uma mulher branca repercute de forma muito mais ampla”. Para ela, o acolhimento e cuidado com as mulheres negras, que colocam seus corpos para ocupar mandatos, é uma estratégia importante para que elas continuem exercendo o papel de enfrentamento contra as desigualdades sociais no Brasil.
O relatório Desigualdades de Gênero e Raça na Política Brasileira faz uma análise comparativa do perfil das candidaturas e das pessoas eleitas para o poder executivo e legislativo municipal levando em consideração escolaridade, profissão, filiação partidária, distribuição regional e porte de municípios. A publicação também destaca o fenômeno do financiamento de campanhas, que foram impactadas pela proibição de doações empresariais, pela criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e a decisão da Justiça Eleitoral em aprovar as cotas raciais e a dotação de pelo menos 30% dos recursos públicos, além do tempo destinado as as campanhas eleitorais de mulheres. Ações que proporcionaram avanços relevantes como o aumento recorde de mulheres, pessoas negras, LGBT+ e indígenas eleitas para as câmaras municipais em 2020, mas, ainda assim, o número é insignificante se comparado ao perfil dos candidatos que dominam os espaços de poder.
Outros fatores também têm contribuído para promover maior diversidade nos poderes executivo e legislativo. As articulações dos movimentos sociais têm sido fundamental para aumentar esse percentual, embora que de forma tímida. Os mandatos coletivos, por exemplo, têm tido um papel importante nesse processo uma vez que reúnem diversas pessoas pertencentes a diferentes setores sociais. “Existem várias iniciativas, especialmente dentro do campo das mulheres, dos movimentos negros, dos povos indígenas, que tem provocado a participação dos povos indígenas, que já são lideranças em associações para se apresentarem como candidatas”, pontua Ingrid Farias.
Sem diversidade não há representatividade
Em 2020, foi a primeira vez que candidaturas trans foram autorizadas a utilizar o nome social nas urnas. No entanto, os partidos e os tribunais eleitorais não atualizaram seus cadastros com a autodeclaração relacionada à orientação sexual e identidade de gênero a partir de marcadores não binários, o que prejudica a identificação de candidaturas trans e LGBT+ como um todo por falta de dados. Em uma análise cuidadosa das informações disponibilizados pela justiça eleitoral, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) identificou casos de adoção de nome social por pessoas cisgênero, o que indica necessidade de aprimoramento na metodologia de registro das candidaturas no país para abarcar melhor a diversidade. do país.
Libra Lima, artista, realizadora audiovisual e coordenadora de comunicação de Vinicius Castello, primeiro vereador negro e assumidamente homessexual eleito na Câmara de Vereadores de Olinda, diz que, para ela, “não existe política se ela não fizer parte de um movimento múltiplo e plural”. Nesse quesito, o país está em dívida com a comunidade LGBTQIA +. Esforços recentes de mapeamento das candidaturas LGBT+ identificaram 10 candidaturas LGBT+ para o poder executivo em 2020, sendo 6 para o cargo de prefeito e 4 para vice-prefeito.
“Não existe política se ela não fizer parte de um movimento múltiplo e plural”, Libra Lima
Imagem: Ana Lira
“Eu acho que a representação é importante para muito além do estético. É uma questão de quais atravessamentos aquele corpo tem a partir dos recortes que carrega. Acredito que não tem como pensar políticas públicas para pessoas trans, pensar a complexidade de entender gênero e identidade, sexualidade junto com racialidade, quando a gente fala de Brasil e sobre um lugar que a negritude atravessa o social, sem ser uma pessoa trans”.
Para Libra, muitas pessoas que vivem da diversidade, que expressam sua sexualidade e tem um trabalho ligado a isso seja artisticamente, politicamente, coletivamente, socialmente, não conseguem ter acesso ao nível de formação e de poder para articular coisas que sejam essenciais para ocupar as esferas de poder. Essas dificuldades também resultam de um contexto de preconceito tendo em vista que o Brasil é um dos países que mais matam pessoas trans no mundo. As violências acabam por também causar o afastamento desses corpos do campo da disputa partidária ou do ativismo político. Um exemplo é a ativista Maria Clara de Sena, que precisou pedir asilo no Canadá depois de sofrer ameaças por denunciar a situação degradante em que vivem pessoas trans no sistema carcerário de Pernambuco. Em São Paulo, a vereadora Erika Hiton já sofreu diversas ameaças e retaliações. “Sem essas pessoas acho que é impossível pensar em um espaço seguro possível para que pessoas trans não só sobrevivam, mas consigam ter qualidade de vida e possibilidade de pensar o futuro”.
Atualmente, os movimento negros, LGTQIA+, tem se preocupado mais com a pauta da democracia representativa, conforme pontua a ativista Ingrid Farias. “Esse momento do voto é importante para poder consolidar uma agenda política que é debatida por esses movimentos. Durante muito tempo, nas décadas de 80 e 90, esses movimentos fizeram críticas a essa integração e participação até um processo de cooptação que aconteceu de lideranças de movimento para os governos,quando a gente teve uma transição de governos de esquerda em vários lugares do Brasil e também no governo federal. Então, a gente vive um processo histórico da volta de uma compreensão de uma necessidade de estratégia da participação dos movimentos sociais nos processo da disputa do voto, das eleições nesse momento de democracia representativa”, analisa.
Aldear a política é preciso
Quando observa-se a presença da população indígena na participação política, o relatório da Oxfam Brasil aponta para o grave problema de sub-representação no poder executivo municipal. Apesar das candidaturas indígenas terem crescido 32% entre 2016 e 2020, o que foi puxado essencialmente pelos homens, os números absolutos ainda são insignificantes. Apesar do crescimento do número de prefeituras comandadas por indígenas (50% em 2020), em todo o Brasil, apenas 9 municípios possuem essa representação.
Patrícia Krin Si Atiku, representante legal da Organização das Mulheres Indígenas Pankararé, ressalta a urgência de ocupação de representantes dos povos originários nos poderes executivo e legislativo. “Nós temos uma grande necessidade de ter mais indígena à frente desses processos porque precisamos defender os nossos direitos. Nós temos uma grande responsabilidade de aldear a política, buscar novas candidaturas, apoiar os e as indígenas que com muita coragem estão agora se candidatando dando sua cara dentro dessa política para gente ter uma representação mais significativa dentro do parlamento”, acredita.
A ativista, que também é coordenadora geral do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA), negrita que mesmo as pessoas que conseguiram assumir mandatos como Joenia Wapichana (REDE – Roraima), primeira indígena eleita para a Câmara Federal, se sentem sozinhas para fazer o enfrentamento contra políticas que impactam diretamente a vida do povo indígena brasileiro. “Quantos PEC’s nós tivemos que correr atrás para não deixar aprovar porque temos poucos parlamentares indígenas? Quem está lá, na bancada do gado e da bíblia, não vai olhar para os outros povos”.
Em meio à baixa representatividade, a população indígena ainda assistiu a um episódio recente que tornou o cacique Marquinho Xukuru (Republicanos) inelegível por uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que determinou novas eleições para prefeito e vice de Pesqueira, no Agreste de Pernambuco. O processo se baseou em uma condenação de Marquinho, em 2015, pela prática de crime contra o patrimônio privado, por incêndio a uma residência particular provocado em 2003. Uma reação a uma atentado sofrido pelo líder.
“Uma grande injustiça foi cometida com o cacique que foi eleito pelos indígenas e população de Pesqueira resultado de um jogo de interesse político. A oposição revirou vários processos antigos. Uma manobra política para manchar a imagem de uma pessoa que sempre lutou pelo seu povo, dando continuidade a história do seu pai, Cacique Xicão Xukuru, um povo de fé, um povo guerreiro, que sempre defendeu os povos indígenas do nordeste e do Brasil”.
Patrícia torce para que o cenário mude a partir das eleições de 2022, mas observa que, para isso, os desafios são maiores para candidatos indígenas, que não contam com o mesmo investimento que homens brancos. “Os partidos precisam entender essa importância de investir nas candidaturas e os povos indígenas também precisam votar”, comenta ela, que está empenhada, ao lado de outras lideranças, a eleger o primeiro deputado estadual do estado, Aruã Pataxó. “Os principais fatores que impedem essas pessoas de acessarem esses lugares é a insegurança, além da criminalização dos povos indígenas. É um campo muito minado, onde o excesso de poder de alguns se volta contra os mais fracos, não que a gente esteja fraco. Mas passamos por um momento muito difícil dentro de um governo que não olha para os povos indígenas com bons olhos, acha que o indígena não tem direito à sua terra, seus territórios, nem à sua fala”.
Enegrecendo o parlamento
No dia 12 de agosto, no Recife, acontece o Encontro de Mulheres Negras do Nordeste Enegrecendo o Parlamento, que vai contar com a presença de 36 candidatas negras nordestinas. A ocasião servirá para apresentar o projeto político das postulantes, que assinarão uma carta compromisso. O objetivo também é fortalecer a participação política de mulheres negras no pleito eleitoral de 2022, estratégia considerada essencial para ampliar a representatividade na democracia brasileira. A iniciativa é uma realização da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e a Casa da Mulher do Nordeste, através do Projeto Mulheres Negras Rumo aos Espaços de Poder, em parceria com outras organizações que realizam hoje iniciativas de fortalecimento de candidaturas negras no Brasil: Mulheres Negras Decidem, Instituto Peregum e Instituto Update.