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Pesquisa revela disparidades entre ensino público e privado no Brasil durante a pandemia

| 17 de dezembro de 2021

Texto: Lenne Ferreira/Cendhec | Imagem: Alcione Ferreira/Cendhec

A ocorrência da pandemia expôs e aprofundou as desigualdades sociais no Brasil e no mundo. Dentre as áreas mais afetadas, a Educação é uma das que se destaca como mostra a pesquisa “A experiência do ensino durante a pandemia de Covid-19 no Brasil”. Realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em parceria com diversas entidades e apoio do Fundo Malala, o levantamento revela dados alarmantes sobre a situação do ensino no país e conclui: as meninas foram as mais atingidas.

Das 3.764.193 estudantes com idades entre 15 e 19 anos que cursavam o ensino médio público, mais 270 mil (8,2%) deixaram a escola durante a pandemia. Dentre as razões alegadas para o abandono escolar, as entrevistadas mencionaram a necessidade de trabalhar, a falta de recursos, a falta de tempo, a avaliação negativa do ensino remoto e a gravidez precoce. A pesquisa também constatou que a maior parte das adolescentes que frequentaram o Ensino Médio da rede pública utilizou o celular (86,9%), porque não tinha computador. Para muitos pesquisadores, a tela pequena do telefone móvel é prejudicial aos processos de aprendizagem, o que se reflete na assimilação dos conteúdos. O levantamento também demonstrou a existência de um mecanismo de exclusão racial que opera no ensino médio, uma vez que 78,7% das adolescentes que não estudam são negras.

Para a assessora política do Inesc, Cleo Manhas, responsável pela coordenação da pesquisa, o impacto na vida das adolescentes é um termômetro que revela a urgência de políticas públicas voltadas para gênero. “Percebemos que as meninas foram as que mais abandonaram a escola. Coube a elas assumirem mais atividades principalmente em casa como cuidar dos irmãos mais novos enquanto as mães trabalham porque em geral as famílias são chefiadas por mulheres. Muitas tiveram de trabalhar fora. Elas também relatam terem tido muito mais questões emocionais até pq sabemos que as meninas estão mais suscetíveis às violências domésticas e durante a pandemia isso se agravou. Tem vários fatores que foram agravados na pandemia e que pesaram mais sobre os ombros das meninas”.

Outro dado revelado pela pesquisa foi o de que o ensino público remoto no Brasil deixou mais de 20% dos estudantes do Ensino Médio sem acesso às aulas online, por vontade própria ou não.  Em comparação com a rede privada, 88,2% estudaram remotamente durante os dois anos que o Brasil segue em pandemia – o dobro do percentual do ensino público. Nas regiões rurais, a situação é ainda pior, já que a soma dos jovens sem acesso à educação pública, durante um ano ou nesses dois anos da crise sanitária, chega a 26,8% do total de estudantes do Ensino Médio. Também é crítico o cenário na região Norte, onde apenas 68% conseguiram ter aulas em 2020 e 2021, contra 84,8% no Sudeste e 80,1% no Sul, revelando a grande desigualdade regional presente no sistema educacional do País.

A pesquisadora Cleo Manhas acredita que o cenário atual da Educação não revela nada de novo. “A pandemia aprofundou todas as desigualdades que já existiam: raciais, regionais, de gênero e de renda. Na pesquisa, vimos que essas desigualdades todas se aprofundaram. Os estudantes da região Norte, por exemplo, foram os mais afetados assim como as meninas negras. A gente percebe também que a pirâmide de renda da escola pública é inversamente proporcional à pirâmide de renda da escola privada”, pontua.

Professora do Ensino Médio de Pernambuco, Rosemary Queiroz atua há 17 anos em salas de aula do Recife e faz um relato que exemplifica bem questões pontuadas pela pesquisa. “O que eu pude perceber durante a pandemia é que alguns alunos não tinham acesso à internet e muitos usavam essa justificativa para não realizar as atividades em casa”. A evasão foi outra realidade sentida por ela, principalmente nas turmas noturnas.

Outra dificuldade percebida pela educadora foi a falta de conhecimento de alguns professores que não estavam familiarizados com usos de algumas tecnologias. “Principalmente os profissionais contratados, que não tinham computador ou outros equipamentos que auxiliassem nesse período de aulas virtuais”, pontua. É o caso da colega de profissão Elvira Cristina, que precisou se readaptar ao novo contexto. “Com a paralisação, tivemos que dar continuidade com a educação. No começo foi muito confuso em relação ao uso das tecnologias. Muitos colegas ficaram apreensivos, inclusive uma amiga minha se desesperou tanto que se desestabilizou porque não tinha o manejo da tecnologia”.

Para Elvira, que precisou se reinventar, apesar das dificuldades, houve avanços na atualização dos processos pedagógicos. “No primeiro momento, eu me preocupava em como chegar nesse aluno da maneira mais clara possível e fui em busca de soluções. Vários momentos foram angustiantes. Muitos alunos não tinham acessibilidade às tecnologias e utilizavam as dos pais que precisavam sair para trabalhar então a gente tinha que ter toda essa compreensão.  Não foi fácil pra gente e muito menos pra eles”.

Embora as redes públicas de educação, que já sofriam com o sucateamento e a redução de recursos, tenham tentado se adaptar ao novo contexto, as limitações estruturais e falta de investimentos governamentais tornaram o cenário ainda mais desafiador. “Há um projeto deliberado neoliberal e capitalista de separar pessoas ricas de pobres, educação para ricos e educação para pobres e aprofundar as desigualdades”, observa Cleo Manhas.

“As escolas públicas estão desmanteladas mais do que nunca e precisam urgentemente de um aporte de recursos para que a Educação entre nos trilhos” Cleo Manhas

Falta compromisso político

Os dados da pesquisa foram obtidos por meio de entrevistas presenciais realizadas pela Vox Populi no mês de julho deste ano com jovens entre 15 e 19 anos de todas as regiões do País, nas redes pública e privada, que vivenciaram a experiência da escola em tempos de crise sanitária. O estudo chega num momento em que o país enfrenta a defasagem de informações sobre o campo da Educação. Com a não realização do Censo 2020, que foi adiado por causa da pandemia, faltam dados que façam um desenho mais preciso sobre as atuais demandas sociais.

“Os governos e seus entes da federação, mas especialmente o Governo Federal, deixou a educação ao Deus dará. O nosso racismo estrutural é mais forte do que nunca, assim como as questões de gênero afetaram ainda mais as meninas. As escolas públicas estão desmanteladas mais do que nunca e precisam urgentemente de um aporte de recursos para que a Educação entre nos trilhos e que a gente consiga atingir as metas do Plano Nacional de Educação, que nem são tão ambiciosas”, avalia Cleo.

Nesse contexto, a pesquisa realizada pelo Inesc oferece um mapeamento que pode ser um direcionamento para implementação de políticas públicas que possam promover avanços educacionais no país. “Todas as políticas públicas deveriam ser antecedidas de pesquisas porque elas traçam melhor o cenário, a conjuntura. É possível, por meio da nossa pesquisa, perceber onde estão os maiores gargalos e as maiores questões para que um governo, caso seja comprometido, atue sobre essas questões. No entanto, vivemos um período em que o governo vai no sentido contrário. É um governo negacionista, que retirou recursos da Educação. Mesmo que uma pesquisa como essa contribua muito para formulação de políticas públicas, com um Governo como esse, tenho certeza que não será utilizada”, lamenta a pesquisadora e conclui: “Esperamos que, em 2022, elejamos um Governo um pouco mais comprometido com a Educação para que essas questões sejam atendidas”.

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