Entrelaçados, a atriz conta a sua trajetória em paralelo a caminhada do grupo que fundou em 2004
“Eu sou atravessada pelo O Poste não só por ter criado o grupo, e isso já é bastante coisa, mas também por perceber que O Poste preenche uma lacuna importante no estado que foi o último a abolir o processo da escravidão e respira isso até hoje, na arte também não seria diferente.”
Atriz e diretora, fundadora do grupo O Poste: Soluções Luminosas, Naná Sodré também é professora de expressão corporal e performance de palco na Escola Técnica Estadual de Criatividade Musical (ETECM). O Poste foi criado em 2004 voltado para iluminação cênica e em 2008 tornou-se um grupo de teatro fortalecido pela relação com religiões de matriz africana e, posteriormente, indígena. Formado por Naná Sodré, Agrinez Melo e Samuel Santos, as duas matrizes os constituem.
Desde o primeiro espetáculo “Cordel do amor sem fim” ao mais recente “O Irôko, a Pedra e o Sol”, em parceria com o grupo Bongar, as narrativas do Candomblé, da Umbanda e da Jurema são refletidas no processo de pesquisa e criação do grupo. “Enquanto grupo preto, a gente sempre reflete sobre a nossa prática questões afroindígenas, de retorno às raízes”, pensando nisso em “Ombela”, as atrizes encenam o texto de mesmo nome escrito pelo angolano Manoel Rui, em umbundu, língua tradicional angolana, e em português.
Na caminhada de Naná e do O Poste, nas práticas do teatro negro também estão “Anjo negro”, em homenagem aos 100 anos de Nelson Rodrigues. “É quando o grupo O Poste assume para a cidade e para o estado que ele fala sobre racismo”. A atriz conta que na época o grupo foi muito indagado sobre a necessidade de debater sobre racismo num país em que há uma suposta “democracia racial”. “Nós somos sementes de grupos de teatro político, como o grupo TEN (Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nasimento). Quando Abdias já pensava nesse tipo de teatro lá atrás ele também era indagado: ‘mas pra quê esse tipo de teatro?’. Quando na verdade você precisa falar disso até hoje”.
Naná também pensa na interseccionalidade e na necessidade em retratar as lacunas sociais em sua atuação e estudos. O solo “A Receita”, protagonizado pela atriz, fala sobre violência contra a mulher preta. É um espetáculo pesado, mas real: “Eu faço A Receita para um despertar de consciência e para que a gente consiga cada vez mais sair da situação de violência”.
Processos criativos
“Toda formação dentro da arte é legítima, a gente não aprende só na universidade, a gente aprende no quintal, na laje, na rua, no bar, no botequim, na encruzilhada”. E foi em dois terreiros localizados na zona norte do Recife que iniciaram-se os estudos do grupo, num processo de decolonização. “A gente sempre reflete sobre as nossas práticas de forma crítica, e pensamos nessa pesquisa aproximando a arte um pouco mais da gente. A partir daí, criamos essa pesquisa, o corpo ancestral dentro da cena contemporânea”.
O Ilê Obá Aganjú Okoloyá, até então liderado por Yá Maria Helena Sampaio, em Dois Unidos, e a Tenda Espírita Cabocla Genoveva, no Alto do Brasil, foram berços de inspiração. A partir da observação dos corpos dos orixás e dos guias, os movimentos foram impressos no corpo dos atores. Naná explica que a base do grupo com a qualidade de movimento, com os elementos da natureza e com centros energéticos do corpo, foi um fator contribuinte. “A gente começou a potencializar esse olhar para o que era nosso”.
As matrizes e motrizes, foram frutificadas nos movimentos em cena e nos exercícios compartilhados com os alunos da escola O Poste, até hoje. “Tudo isso, hoje em dia, graças a Oxalá, faz parte do processo de aprendizagem, da criação de epistemologias, de toda cosmovisão”.
Entre sementes, frutos e raízes, em toda a sua trajetória “O Poste é um poste que anda”. Nas palavras da atriz, a metáfora usada para a caminhada do grupo acontece porque suas pesquisas verificam e preenchem as lacunas sociais, refletem sobre suas práticas e assim desenvolve-se os espetáculos, as mostras e os festivais. O Poste caminha.
A exemplo da mostra PretAção, primeira mostra de teatro de mulheres pretas de Pernambuco. Criado e coordenado por Naná, o objetivo do evento é visibilizar o trabalho das mulheres pretas no teatro. “Quando a gente fala um pouco de interseccionalidade, sobre a situação da mulher preta no país, ela dentro de todas as questões, ainda está abaixo de todos os outros grupos sociais. Então isso no teatro também não é diferente”.
“Quando é perguntado: onde estão as mulheres pretas no teatro? Elas sempre existiram, elas são invisibilizadas, então essa mostra vem com o intuito de visibilizar as mulheres pretas”.
Os encontros
Dos tantos encontros de Naná: o consigo e com a ancestralidade, motivado pelas aulas de teatro físico na universidade e, mais tarde, pelas pesquisas para O Poste; o com Agrinez e Samuel, integrantes do grupo, parceiros de teatro e de vida; e com aquelas e aqueles que são tocados pelo seu trabalho.
Em meados de 1995, ainda como estudante de Artes Cênicas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a atriz conta que não se sentia representada no teatro e caminhou pela televisão, em publicidades institucionais e séries. No entanto, a relação com o teatro mudou na cadeira de Interpretação 3, com o professor Roberto Lúcio. Foi ali, no contato com o teatro físico, que Naná lembra ter encontrado a si mesma. “Entendi que o tipo de teatro que eu queria fazer era aquele, teatro com pesquisas em comunidades, sendo atravessado por etnias”.
Para ela o momento foi um reencontro com a própria identidade. “À medida em que eu comecei a ter contato com esse teatro, com práticas de conscientização corporal, da respiração e das potencialidades do corpo, eu me vi nas potencialidades das comunidades de trabalho, no meu corpo preto, no meu corpo diaspórico, no meu corpo interseccional, sendo mulher preta”.
Diante de um contexto acadêmico majoritariamente branco, Naná encontrou aquilo que viria a ser a semente da sua trajetória com O Poste. “Ali eu já via algo mais próximo a mim”.
“A pesquisa voltada pra ritualidade, é quase como uma volta pra casa, né?”
A identificação foi a chave para Naná e, hoje, o grupo possibilita o acesso à própria identidade, representatividade e encontro com saberes ancestrais através da Escola O Poste e do curso O Ator Total. “O Postinho”, grupo formado por jovens negros é reflexo dessa atuação, de que as sementes continuam sendo plantadas e os frutos sendo colhidos.
O olhar de Naná observa feliz e emocionado o caminho da estudante de artes cênicas, na UFPE, construído até a fundadora e atriz do grupo O Poste. “Vejo felicidade em ver o poste cheio de pessoas pretas. Recentemente, aconteceu o espetáculo Clamor Negro, de Odailta Alves, no nosso espaço, e aconteceu uma coisa muito bonita: O Poste estava cheio de pessoas, que não eram de teatro, eram pessoas de classes e profissões diferentes, mas que todas elas tinham em comum o escurecimento, o saber que nossas narrativas importam. Especialmente nesse dia tivemos pessoas importantíssimas presentes, que plantaram sementes. Fico muito feliz que O Poste seja um espaço que une e agrega essas pessoas”.