Texto: Lenne Ferreira | Imagens: Arquivo pessoal
Verso virou grito para Flora Rodrigues quando ela ainda tinha 13 anos de idade. A escrita foi o único meio encontrado pela poeta pernambucana para manifestar a revolta que sentiu quando seu irmão sofreu uma abordagem policial truculenta. “Foi a partir desse momento que eu entendi que a poesia na minha vida seria uma ferramenta de transformar o mundo e reivindicar pela vida do meu povo”. Moradora do bairro do Arruda, Zona Norte do Recife, Flora, hoje com 18 anos, conhece bem as violências que perpassam o dia a dia de jovens negras(os) e encontrou na arte um meio de comunicação que ressignificou a sua existência.
A educação foi fundamental para que a artista entendesse seu lugar político no mundo. O contato com movimentos sociais, a religiosidade de matriz africana foram elementos cruciais para que ela percebesse a importância de sua voz para a comunidade negra. Ela conta que, na infância, sempre foi sonhadora e idealizava possibilidades que uma sociedade racista nega para meninas como ela. “Muitos professores colocavam o meu corpo como um corpo não capaz, que não tinha possibilidade de um futuro possível, digno. Através do meu ativismo fui erradicando esses traumas da infância”, comenta ela, que hoje atua como coordenadora da Rede Tumulto, coletivo que trabalha a comunicação como principal ferramenta de gestar formações políticas, discutir temas como sexualidade, raça, violência policial.
“A Rede Tumulto possibilita a contranarrativa a essa mídia tradicional de informação. Temos um grupo de jovens com os quais trabalhamos oficinas sobre direitos sexuais e reprodutivos, auto estima, auto cuidado. Sempre tiramos um produto de comunicação para que outras pessoas acessem”, pontua. Poeta e comunicadora popular inquieta, Flora acredita no poder da palavra para movimentar estruturas: “A minha poesia é uma comunicação que traduz muito do que é vivenciado por uma negra jovem periférica”.
A potência de sua escrita/ação foi sentida durante as recentes mobilizações para ajudar famílias que sofreram perdas materiais durante a última cheia que atingiu o Recife. Após publicar uma poesia expondo o descaso da gestão pública com as comunidades de áreas socialmente vulneráveis, a poeta conseguiu doações para famílias atingidas. A força da atuação da artista é reverenciada por ativistas como Jackson Augusto, integrante do Movimento Negro Evangélico do Brasil e Coalizão Negra dos Direitos.
“Flora tem demonstrado a força da juventude negra, tem se demonstrado uma voz importante das demandas das mulheres jovens negras que estão na periferia. Flora é fruto do movimento negro. Flora não é fruto do acaso. Pelo contrário, ela é gestada nessa ancestralidade, ela é formada a partir dessa tecnologia chamada negritude e organização, principalmente e sobretudo, das mulheres negras. Então, o que Flora tem feito seja na arte, seja no ativismo, seja na construção do conhecimento aqui no estado de PE e RMR tem sido ecoado para além do estado. Então é muito bom sempre trocar com ela e ser atravessado pela poesia, arte e por toda sabedoria que ela trás”, comenta Jackson, que está acostumado a cruzar com a artista em atos de rua organizados pelo movimento negro local.
A seguir, Flora Rodrigues fala sobre os percursos que a formaram enquanto ativista, a militância contra o racismo e outras opressões, a aposta numa comunicação ativa, a construção do seu primeiro livro, “Bibi Zine”, espiritualidade, família e afetividade. Confira.
Afrontosas: Como foi sua infância na escola?
Flora Rodrigues: Sempre sonhei com algumas possibilidades para o meu caminho. Sempre fui uma criança que idealizava muitas coisas a nível profissional, de vida só que quando a gente se entende que somos uma criança preta o sistema coloca pra gente que não é possível. Muitos professores colocavam o meu corpo como um corpo não capaz, que não tinha possibilidade de um futuro possível, digno. Mas sempre fui muito sonhadora, e através do meu ativismo fui erradicando esses traumas da infância.
Afrontosas: Como as tuas vivências influenciaram o teu trabalho artístico?
Flora Rodrigues: Eu acredito que a minha vivência, na verdade, já é meu trabalho artístico. Não são coisas que se separam, são coisas bem homogêneas no sentido de que o meu trabalho é muito do que eu vivo, do meu movimentar, de como eu entendo as estruturas e uso a comunicação através da poesia para salvar outras vidas, de fazer com que outras pessoas através dos meus versos compreendam e saibam dar nome a uma determinada opressão ou violência.
Afrontosas: Quando você viu a poesia como possibilidade de se expressar em mundo que oferece poucas possibilidades a jovens negras?
Flora Rodrigues:A minha primeira poesia eu fiz quando meu irmão sofreu violência policial atrás da minha casa. Aos 15 anos de idade, o policial colocou o fuzil na cara dele, fez um processo bem truculento como essa corporação é pensada para projetar sobre os nossos corpos. A partir disso, eu fiz minha primeira poesia, muito com forma de revolta. Foi a maneira que consegui me expressar. Não foi nem por que eu entendia que a poesia era uma ferramenta que poderia me projetar para outros lugares, que eu poderia fazer com que outras pessoas se encontrassem no meu verso. Foi a única maneira que eu encontrei de amenizar aquela dor e transcrever aquela revolta. Foi a partir desse momento que eu entendi que a poesia na minha vida seria uma ferramenta de transformar o mundo, mas também reivindicar pela vida do meu povo, sobretudo a vida do meu irmão, que poderia nem estar vivo hoje.
“Ser uma jovem fora da estatística é pensar muitas coisas, sobretudo saber que a qualquer momento eu posso virar uma estatística porque ela bate em minha porta todos os dias” Flora Rodrigues
Afrontosas: Qual foi o momento mais especial que a poesia já te proporcionou?
Flora Rodrigues: Eu acredito que a celebração dos meus versos é sempre pra mim algo muito grandioso independente dos lugares que ocupo ou dos espaços que meus versos me levem. Eu acredito que essa celebração acontece quando pessoas se encontram nos meus escritos, quando pessoas dizem que minha poesia arrepiou elas, quando dizem que a minha poesia fez com que elas tivessem outra cosmovisão de mundo, que a minha poesia fez com que o filho dela entendesse o que é racismo, conseguisse compreender mecanismos e tecnologias de se defender dele e se movimentar em outro formato neste mundo. Eu acho que é um dos momentos mais especiais, quando eu recebo essa devolutiva de que a minha poesia tá sendo, de fato, essa tecnologia.
Afrontosas: Bibi Zine é seu primeiro livro. Fala um pouco sobre a importância de colocar esse projeto no mundo
Flora Rodrigues: O Bibi Zine foi uma grande gestação. Eu gestei e pari durante a pandemia. Foram momentos que foram muito de me revisitar, fala muito sobre a minha espiritualidade, sobre como eu entendo esse meu movimentar através da minha religião e da minha fé. Eu sou filha de Iansã com Xangô e Oxum, mas Iansã é a dona da minha cabeça. E eu compreendo o meu movimento a partir dessa mulher que me pariu no mundo. “Oyá em mim” é uma das poesias que mais me toca. A partir dela eu projetei o livro todo. Eu compreendo a minha existência nesse mundo, eu compreendo que Oyá sou eu e eu sou Oyá, que ela é minha grande mãe, que ela me rege, me possibilita e me faz me retroalimentar de vida. E a partir do terreiro, com essa grande ligação para que eu consiga consolidar minha existência no aiê, consolidar minha fé, cultuar a minha ancestralidade, vibrar os sonhos da minha ancestralidade.
Afrontosas: Você considera que o seu trabalho pode possibilitar o empoderamento de outras jovens negras e periféricas como você? Porque?
Flora Rodrigues: Eu acredito que a minha poesia possibilita, sim, o empoderamento de outros jovens porque eu acredito que a partir do momento que você escuta, que você sabe nomear as opressões que está passando ajuda a projetar o seu corpo enquanto jovem em outro lugar, que não esse lugar que o sistema quer que a gente ocupe de marginalização, de nos colocar sempre como esse sujeito que não vai prover vida, no sentido de não prover conhecimento, tecnologia, correria, trabalho, grandes projetos. Eu acho que construir caminhos futuros possíveis através da minha poesia ajuda a projetar outras possibilidades para os jovens sim. Eu acho que é um empoderamento contínuo, da mesma forma que eu empoderar, eu também sou empoderada por esses jovens. Acho que o grande ato político da juventude negra brasileira é estar viva.
Afrontosas: Como uma jovem negra e periférica, você acredita que a comunicação é uma ferramenta estratégica? Por que?
Flora Rodrigues: Eu acredito que a comunicação é a maior engrenagem revolucionária do mundo. A comunicação é a grande ferramenta que possibilita que as pessoas entendam contextos e se identifiquem com determinado contexto ou não também. A comunicação nos possibilita acessar e fazer com que outras pessoas acessem algo. Acho que é uma das principais ferramentas de luta porque através dela a gente consegue alcançar outras pessoas e estar em espaços onde não estamos fisicamente, mas o nosso ser revolucionário chegou antes da gente chegar. Hoje eu me intitulo enquanto comunicadora porque eu entendo que a minha poesia comunica e chega em espaços que eu não cheguei enquanto presença. A minha poesia é uma comunicação que traduz muito do que é vivenciado por uma negra jovem periferia.
Afrontosas: A vida da Flora, a militante, tem espaço para momentos de autocuidado? O que você faz para cuidar da sua saúde mental?
Flora Rodrigues: É um lugar muito outro pensar autocuidado pra mim. O meu maior formato é estar no meu terreiro, estar com minha amizades, que são pessoas em que eu acredito e que acreditam em mim, sobretudo pessoas pretas,e a gente se retroalimenta dentro desse ciclo afetuoso. Eu acredito que o amor é um grande ato de revolução porque a partir do amor a gente consegue retroprojetar nosso caminhar no mundo. Acho que quando a gente constrói afetividade a gente também quebra uma grande expectativa do sistema que diz que a gente não é digno de amar nem do amor, que a gente não é digno do prazer, do tesão e todas essas coisas que um corpo desfruta com sanidade. Meu maior ciclo de afetividade de autocuidado tem sido estar com minha mãe, minha avó e meus irmãos.
Afrontosas: A juventude tem pautado reivindicações importantes e a popularização da internet tem ajudado a engajar ações sociais de impacto. Você acredita que a juventude pode e deve ocupar mais espaços nas discussões políticas?
Flora Rodrigues: A gente não deixou de ocupar os espaços porque eles nos foram roubados da gente por esse processo de colonização. A gente existiria a partir de outra lógica, o sistema seria outro, se a gente não fosse colonizado, vindo de África já com essa carga, com esse peso e com um lugar já projetado de onde a gente estaria, onde ocupar e fazer. A juventude hoje é essa grande ferramenta de potência, são corpos que pensam grandes processos revolucionários só que muitas vezes utilizado como massa corpórea de força. A gente pensa em grandes projetos, mas não somos chamados para executar porque dizem que não temos idade ou capacidade par ocupar aquilo mesmo quando a gente geriu a ideia. A juventude produz ideias que são roubadas por essa lógica geracional de que o jovem só vai prover mas nunca vai tomar posse de grandes projetos.
Afrontosas: Muitos jovens com a sua idade e cor já estão mortos ou presos. Ser uma jovem fora dessas estatísticas te estimula a continuar lutando para que mais jovens tenham outras alternativas e possam seguir vivos/as?
Flora Rodrigues: Ser uma jovem fora da estatística é pensar muitas coisas, sobretudo saber que a qualquer momento eu posso virar uma estatística porque ela bate em minha porta todos os dias. A gente vive no medo, não é um país seguro para os nossos corpos, não é um país seguro para o nosso movimentar. Ser essa negra jovem viva é questão de celebração. Por mais que o mundo não esteja pronto para desfrutar do nosso prosperar a gente vai construindo caminhos possíveis porque foi a gente que fez isso tudo, os povos originários e tradicionais que gestaram todo esse grande projeto de nação e que sabem como lidar com esse projeto. Então ser essa negra jovem viva é reafirmar que as mulheres negras temos em nossas mãos um grande projeto de nação. Por todo esse processo de sucateamento, colonização, conservadorismo, muitas vezes a gente não consegue avançar e colocar nosso projeto. Estar viva é falar sobre projetos futuros, prosperidade, falar sobre dinheiro que é algo que nos negam muito falar.