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Na ficção e na vida real: gênero, raça e classe social revelam quem sofre violência sexual no Brasil

| 14 de julho de 2023

Reportagem e arte : Alcione Ferreira

Era uma vez uma jovem chamada Medusa, moradora de uma pequena vila próxima ao mar, na Grécia. Sacerdotisa dedicada à deusa Atena, empregava seu tempo aos rituais sagrados e ao serviço no templo. Foi durante um desses rituais que Medusa atraiu a atenção indesejada de Poseidon, o deus das águas, que movido por desejos sexuais criminosos, cobiçou seu corpo e abusou-a sexualmente.

Devastada e traumatizada pela violência que sofreu Medusa não encontrou apoio entre os deuses do Olimpo. Em vez disso, foi considerada culpada por despertar o “desejo incontrolável” em Poseidon. Como punição foi transformada em um ser terrível, com serpentes venenosas em vez de cabelos e um olhar que transformava em pedra todos aqueles que a encaravam.

Essa transformação não apenas destituiu Medusa de sua humanidade, mas também a isolou completamente do mundo. Ela experimentou uma mistura complexa de raiva e tristeza. Com o tempo, encontrou conforto nas serpentes que agora habitavam sua cabeça, vendo-as como companheiras e protetoras, ressignificando sua dor em uma busca por justiça.

Saindo da Grécia Antiga e indo em direção aos trópicos, mais precisamente no Brasil, a lenda do Boto Cor de Rosa, presente na cultura amazônica, apresenta um cenário semelhante com o conto da Medusa. A história se passa às margens do rio, o Boto Cor de Rosa é retratado como um ser sedutor que assume forma de homem e enfeitiça mulheres em festas noturnas, as atrai para as águas e abusa de seus corpos, resultando em gravidezes não planejadas fruto de estupros e abandono paterno. Depois de encantadas pelo ser mítico as meninas e mulheres, de comunidades pobres e ribeirinhas, passam a serem alvos de críticas e rejeição por parte de seus familiares e vizinhos, levando-as a um lugar de solidão e tristeza.

As duas histórias reforçam estereótipos de gênero que culpabilizam sempre as mulheres, colocando sobre elas a responsabilidade pelas  experiências traumáticas.

Da fábula à realidade

A violência sexual não está isolada em um bloco fechado do imaginário da mitologia grega ou do folclore brasileiro, muito pelo contrário é o reflexo de um problema real, contemporâneo, grave e persistente em todo o mundo, e o Brasil não é exceção, seja pelos casos de estupro ou pelas inúmeras ocorrências de gravidezes não planejadas e abortos entre meninas e mulheres. Diversas pesquisas, estudos e relatórios revelam dados preocupantes sobre o perfil das vítimas de violência sexual no país. Examinamos algumas dessas informações coletadas e divulgadas nos períodos entre 2018 e 2022, a partir dos recortes de gênero, raça e classe social com o objetivo de destacar a realidade enfrentada por mulheres e meninas, especialmente aquelas pertencentes a grupos marginalizados, que sofrem com essa violação de direitos fundamentais.

Um aspecto perturbador revelado pelo levantamento da Folha de São Paulo com informações do Sistema Único de Saúde (SUS) é o alto número de meninas de 10 a 14 anos que foram internadas em hospitais devido ao aborto em 2021, ultrapassando 1.500 casos. Apenas 8% dessas internações foram por causas autorizadas, o que sugere uma falta de acesso aos serviços da rede pública de saúde e legalmente permitidos. Vale lembrar que no Brasil o aborto legal é garantido pelo Sistema Único de Saúde para casos de gravidez precoce.

Um dos casos mais emblemáticos aconteceu no Espirito Santo, em 2020 quando uma menina de apenas 10 anos, vítima de estupro cometido pelo próprio tio que ocasionou na gravidez, se viu em uma situação de revitimização quando, além de enfrentar uma batalha judicial para ter direito ao aborto, já assegurado pela lei brasileira desde 1940, ainda teve sua história escancalhada pelas alas mais conservadoras do país numa tentativa de impedir que a lei fosse cumprida. O procedimento acabou por acontecer em Recife, no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM) numa verdadeira operação de segurança para que a identidade e integridade da menina fossem preservadas e que a experiência fosse o menos traumática possível, mesmo sob pressão e protestos de grupos ultra conservadores que estiveram aglomerados em frente ao hospital. O Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social, Cendhec, se posicionou em favor da vítima e sua família, além da direção do CISAM e toda a equipe técnica de atenção à saúde, em especial aos médicos Prof. Olimpio Moraes e Dr. Sérgio Cabral. Confira a nota de posicionamento completa do Cendhec aqui.

Segundo dados coletados pela Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Paraná 52% das vítimas de estupro em 2021 eram negras. Isso aponta para a interseção entre a violência sexual e o racismo estrutural. As mulheres negras continuam a ser desproporcionalmente afetadas por esse tipo de violência, sofrendo consequências devastadoras em sua saúde física e mental.

Já a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) também revela que mulheres indígenas (17%), negras (11%) e pardas (11%) periféricas compõem o perfil mais recorrente entre as vítimas de aborto no Brasil, representando juntas 39% dos casos. Esse aspecto destaca a desigualdade socioeconômica e geográfica que contribuem para a vulnerabilidade dessas mulheres e meninas, muitas vezes privadas de acesso adequado a serviços de saúde, educação sexual e apoio psicossocial.

A reincidência do aborto também é uma questão preocupante. A Pesquisa Nacional de Aborto identifica que uma em cada cinco mulheres já recorreu ao aborto duas ou mais vezes, e 74% dessas eram negras. O estudo aponta que pelo menos 52% das mulheres no Brasil realizou seu primeiro aborto ainda na adolescência, antes dos 19 anos. Isso evidencia a ausência de educação sexual nas escolas, acesso a métodos contraceptivos e apoio a meninas em situação de rejeição, o que leva a decisões difíceis e potencialmente prejudiciais à saúde como abortos inseguros e até ideações suicidas.

Quando o perigo mora em casa

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública é uma importante fonte de dados sobre criminalidade no Brasil, fornecendo informações sobre diversos tipos de violência, incluindo violência sexual contra mulheres e meninas. As estatísticas reveladas no último relatório pintam um retrato alarmante da realidade enfrentada por esses grupos no país.

Entre as vítimas de estupro e estupro de vulnerável com até 13 anos, os dados mostram que a maioria dos agressores está muito próxima das crianças e adolescentes. Em 64,4% dos casos, os autores dos estupros são familiares das vítimas, enquanto em 21,6% são pessoas conhecidas pelas mesmas. Essas informações apontam para o fato de que a violência sexual em grande parte ocorre dentro do próprio círculo de confiança da vítima.

O local onde esses crimes acontecem também é uma questão alarmante. A residência é o local que mais aparece como cenário desses abusos, totalizando 71,6% dos casos de estupro de vulnerável. Isso significa que a própria casa, que deveria ser um espaço de segurança e proteção torna-se o ambiente onde esses crimes ocorrem.

As estatísticas ainda destacam que crianças e adolescentes continuam sendo as principais vítimas da violência sexual, representando 61,4% dos casos notificados. Esses números são especialmente angustiantes, pois evidenciam que pessoas incapazes de se proteger, estão enfrentando uma ameaça constante.

Esses números oficiais podem representar apenas uma parcela da realidade, uma vez que muitos casos de violência sexual não são reportados às autoridades. Apenas 8,5% das violações no Brasil chegam ao conhecimento da polícia, e somente 4,2% são registradas pelos sistemas de informação da saúde. Essa subnotificação pode ser atribuída a uma série de fatores, como o medo da vítima em denunciar o agressor, a desconfiança no sistema de justiça ou até mesmo o desconhecimento sobre como proceder em situações de violência sexual.

Com base nas estimativas do anuário, é possível afirmar que o número real de casos de estupro no Brasil pode chegar a 822 mil por ano. Os dados também revelam que a grande maioria das vítimas é do sexo feminino, com 88,7% das ocorrências, enquanto 11,3% são do sexo masculino. Além disso, os números apontam uma forte associação entre a violência sexual e raça, com 56,8% das vítimas sendo pretas ou pardas.

Segundo Juliana Accioly, advogada e coordenadora de projetos do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social, Cendhec, “A maior dificuldade para as organizações da sociedade civil que atuam na defesa de crianças e adolescentes é a existência da naturalização da violência dos corpos de meninas e mulheres. Essa estrutura gera uma população que tem gênero, cor e classe social como perfil das principais vítimas  em relação as violências sexuais. Somado a isso existe ausência de política pública voltada para esse recorte específico a partir dessa estrutura que gera a violação desses corpos, geralmente meninas e mulheres negras e periféricas. Outra dificuldade é em relação à responsabilização, ela também traz o viés da naturalização. Existe a narrativa do próprio sistema de segurança de ser conivente com essa violência através da culpabilização da vítima através do fortalecimento do patriarcado”, alerta.

Além disso, entre 2010 e 2020 foram registrados 240 mil partos de meninas entre 10 e 14 anos, o que resulta em uma média de 24 mil por ano, segundo informações do Data SUS e IBGE. Integra esses números a revoltante história, que não é fábula, conto ou causo, de uma menina moradora do Piauí, que engravidou duas vezes vítima de sucessivos estupros. A primeira gestação, aos 10 anos, a criança foi abusada sexualmente em um matagal onde mora com a família, e mesmo tendo o direito garantido por lei ao aborto sua mãe insistiu para que a gravidez não fosse interrompida, a menina então deu a luz ao bebê mesmo não sendo esse o seu desejo.

Um ano depois foi novamente vítima de estupro e engravidou do tio. Outra batalha se formou em torno do destino da vítima: em setembro do ano passado, após desentendimentos com a família, a vítima foi encaminhada juntamente com seu primeiro filho a um abrigo onde falou sobre a gravidez e foi acompanhada com o conselho tutelar ao hospital. No mesmo mês uma juíza da Vara da Infância e Juventude de Teresina nomeou um defensor para atuar em favor do feto. Somente após a troca da juíza, em novembro do ano passado, uma nova decisão autorizou a interrupção da gravidez, no entanto, um mês depois o desembargador José James Gomes Pereira da 2° Camara Especializada Civil do Tribunal de Justiça do Piauí derrubou a liminar e autorizou a gestação.

A menina, que não queria ter outro filho e desejava voltar a estudar, deu a luz pela segunda vez aos 12 anos e dessa ocorrência resultou na entrega do bebê para adoção por falta de condições socioeconômicas, segundo o pai da vítima. A família mora na zona rural do Piauí em uma casa de taipa com 3 cômodos, todos dormem num único quarto distribuídos entre duas camas, colchões no chão de terra batida e redes.  O caso chegou a ser denunciado a Corte Interamericana de Direitos Humanos através do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres e do Ipas.

Os levantamentos revelados pelas pesquisas e relatorias expõem um alerta sobre a violência sexual no Brasil. Mulheres e meninas, especialmente aquelas pertencentes a grupos marginalizados, enfrentam altos índices de violência, aborto inseguro e falta de acesso a serviços essenciais de saúde e apoio. Isso mostra a urgência para que medidas efetivas sejam tomadas para combater essa violência, promover a igualdade de gênero, combater o racismo estrutural e garantir o respeito aos direitos humanos por meio de esforços coletivos, participação da sociedade civil organizada e políticas públicas abrangentes.

Por fim, mas ainda sem o ponto final dessa história, embora muitas fábulas tenham retratado Medusa apenas como um monstro maligno e o Boto Cor de Rosa como um ser destituído de moral e, portanto não responsável pelos seus atos, é importante acessar suas histórias completas de forma crítica e compreender a presença do real cotidiano por trás da ficção e de como historicamente ela vem sendo replicada reforçando a estrutura patriarcal. Ao fazer isso, podemos começar a desafiar as narrativas que perpetuam a normalização em relação às violências sexuais contra meninas e mulheres assim como suas revitimizações e contribuir para o debate da construção de uma sociedade mais segura e justa para as mulheres.

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