Conversar com Alessya Rodrigues, 34 anos, a Leka, manicure do bairro de Afogados, centro do Recife, é entender que estar e manter-se viva é a primeira de muitas batalhas travadas cotidianamente pelas mulheres numa sociedade onde o patriarcado as quer silenciadas, apagadas e invisibilizadas. Leka faz questão de enfatizar que ser uma mulher trans não é uma escolha, é um reconhecimento de si, é identidade, a completa exatidão de sua pessoa no mundo: “Mulher para mim é diversidade”, crava a frase com determinação e serenidade.
Mesmo diante das certezas que carrega com força e convicção, Leka sabe que esta é uma condição cara para a população LGBTQIA+, sobretudo no Brasil, país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo: “Eu poderia nem estar aqui dando essa entrevista, poderia estar morta como tantas amigas que perdi para a violência de gênero”. E Leka sabe bem do que está falando. Segundo o último relatório divulgado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) o país lidera o ranking de homicídios por 15 anos consecutivos, pelo menos 72% das vítimas eram mulheres trans negras, sendo a maior parte oriunda de classes sociais empobrecidas, com idade equivalente à 30,4 anos , e a mais jovem com apenas 13. A falta de pesquisas nacionais aponta diretamente para uma subnotificação, que é reforçada pela ausência de políticas públicas voltadas para a população transgênero.
“Eu poderia nem estar aqui dando essa entrevista, poderia estar morta como tantas amigas que perdi para a violência de gênero (…) usamos da arte para poder sobreviver”
Leka ressalta que vivenciou muitos desafios dentro e fora do ambiente escolar e relembra que na sua infância não teve suporte educacional adequado que pudesse lhe assistir juntamente com outras pessoas de identidade trans e travesti. A manicure pontua um momento importante sobre seu processo de transição, quando o pai, Sílvio Lourenço, precisou ficar internado em um hospital devido à leucemia. Apesar do pai ter sido ausente para com a filha e contra sua identidade de gênero, Leka conta que ficou cuidando do mesmo durante toda a internação e reconstitui uma das cenas que não esquece: “Eu havia voltado de uma festa, estava toda brilhosa, toda montada, toda no jeans e fui direto pro hospital ficar com ele. Quando ele me viu com aquele brilho todo acabou até se sentindo melhor, me olhou e disse: ‘Tu não existe’”. Daí aos dias que se seguiram à sua internação, Silvio Lourenço foi se entendendo com Leka. “Ele me pediu perdão pelas atitudes preconceituosas que teve comigo no passado, e eu perdoei sim”. Dois dias depois seu pai foi entubado e em seguida viria a falecer, em setembro de 2011.
O Mercado de trabalho e a lógica perversa que exclui mulheres trans e travestis
A personalidade de Leka é sensível às artes e à cultura. Ainda na adolescência iniciou seus primeiros passos no Balé popular do Recife e em cursos de frevo. Integrou a Cia. Leões do Norte, o Balé Brincantes de Pernambuco. Foi nessa fase da vida que começou a se entender enquanto gênero feminino: “Tava começando a deixar meus cabelos crescerem, meu pai queria raspar mas minha mãe, que sempre me apoiou, não deixou. Ela sempre travou grandes batalhas para me proteger”. Também na adolescência foi educanda do projeto Oi Kabum! onde aprendeu e desenvolveu seus talentos para o audiovisual.
Apesar da consolidada formação que recebeu, o mercado de trabalho não tem acolhido Leka como deveria. Ela relembra que já perdeu oportunidades de emprego na área para a qual se especializou por conta da discriminação com mulheres trans: “Fui selecionada para uma oportunidade como editora de vídeo, ao chegar ao local a pessoa responsável pelo recrutamento me olhou e disse que a vaga já havia sido preenchida. No dia seguinte fico sabendo que a empresa pediu outra indicação com ‘perfil diferente do meu’, outro colega foi na mesma empresa e ficou com a vaga, que na verdade ainda estava aberta, só não para mim, ficou nítido o preconceito comigo por ser uma mulher trans”. Este episódio relatado por Leka infelizmente é comum no Brasil, o mercado de trabalho é ainda fechado e não oferece qualificação para esta população, como apontou um estudo da Fapesp realizado em 2020 com 528 mulheres trans no estado de São Paulo: apenas 13% das entrevistadas tinham emprego formal. Às outras 87% restam os empregos informais ou o desemprego. “A gente está sempre na coxia , sempre nos bastidores, e não como protagonistas, claro que tem tido um movimento muito importante de firmar a presença da mulher trans nos espaços como a representação de Érica Hilton no parlamento ou de outras mulheres no cinema e na teledramaturgia, mas o caminho ainda é longo e há muito a se fazer”. Afirma.
Enquanto Leka continua a luta para existir, com determinação e recebendo o afeto incondicional de sua mãe, Ana Rodrigues , seus irmãos e dos três sobrinhos que ela cuidadosamente acolhe, educa e brinca, a exemplo do pequeno Apolo, de seis anos, que a chama carinhosamente de “tia boneca”, muitas outras mulheres trans não conseguiram chegar até aqui, e infelizmente não são poucas/os, a exemplo dos casos emblemáticos que aconteceram em 2020 no Recife quando Kalindra Selva foi encontrada morta ao ser asfixiada dentro de casa, já Roberta Nascimento da Silva teve 40% do seu corpo queimado e morreu em consequência dos ferimentos. Além do assassinato de Crismilly Pérola, conhecida também por Bombom e PiuPiu. A necessidade de políticas afirmativas em prol das diversidades de gênero não é só um desafio, é sobretudo uma urgência permanente, como direito assegurado na constituição brasileira, e para a garantia da vida em todas as suas dimensões e para todas as existências.