Nossa Voz

Meninas e mulheres em situação de rua não fecham os olhos na hora de dormir

| 18 de agosto de 2023
Fotos, Artes e Reportagem: Alcione Ferreira

A correlação entre a incidência de violência e a presença de mulheres em situação de rua é um tópico complexo de se abordar. A produção de dados qualitativos, assim como diversas pesquisas quantitativas no Brasil ressaltam a violência como um fator intrínseco, abrangente e determinante nas vidas das mulheres nesta condição. Os estudos nacionais apontam que a história pregressa das mulheres em situação de rua é frequentemente marcada por experiências de abuso e maus-tratos na infância, violência doméstica e sexual.

Nas vidas já estabelecidas nas ruas há uma persistência das formas de violência física e sexual contra meninas e mulheres, perpetradas tanto por parceiros íntimos, conhecidos e desconhecidos assim como  por forças policiais, além daquelas ligadas ao tráfico de drogas. Embora as formas mais diretas e físicas de violência sejam mais evidentes e predominantes, é importante notar que essa dimensão  é apenas a superfície de um problema mais intrincado e agudo.

No estudo  “Desde casa, desde berço, desde sempre: violência e mulheres em situação de rua”, as pesquisadoras  Iara Flor Richwin e Valeska Zanello  mergulham em camadas mais profundas em busca do entendimento sobre o fenômeno da violência e suas dimensões relacionadas às meninas e mulheres em situação de rua: “As  formas  de  violência  física  e  sexual  são  mais  nítidas  e  mais  pregnantes.  Elas  estão  estampadas  nos  corpos  das  mulheres  em  situação  de  rua  e recebem maior foco das produções científicas. Contudo a  violência  física  constitui  somente  a  parte  visível  de  um  problema  mais  profundo  e  complexo, e ela frequentemente nos distrai das formas mais escamoteadas da violência. A violência não é uma categoria transparente mas um conceito escorregadio, enganoso e não linear, cujos significados são conformados por suas dimensões socioculturais “  (…) “a violência enfrentada por mulheres em situação de rua requer ir além de sua fisicalidade e de suas feições evidentes, demandando um exame de suas opacidades e de suas diferentes formas de manifestação, ação e reprodução em  contextos  específicos.”

As opacidades às quais as autoras se referem guardam relação com o entendimento sobre as origens das violências no Brasil a partir das bases constituintes de suas desigualdades, calcadas no modelo colonizador e explorador dos povos negros e originários e o sequestro e abuso de seus  corpos e subjetividades,  que são a raiz da violência sistêmica às mulheres. O sistema colonial e escravagista desempenhou esse papel na formação da sociedade brasileira, sendo, nas palavras de Achille Mbembe um “repositório amargo” que moldou seus elementos estruturais. Esse legado histórico continua a influenciar profundamente a contemporaneidade brasileira. A dimensão racial surge como um fator crucial, perpetuando formas de marginalização social, econômica e cultural no país. A dinâmica dessa violência é agravada por manifestações do “racismo gendrado”, onde as especificidades de gênero aprofundam a marginalização racial. As ideias de Lélia Gonzalez e Grada Kilomba destacam a presença desse tipo de racismo, que se traduz em formas complexas de sexismo racializado.

O que dizem números e dados?

De acordo com estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em março de 2020, quase 222 mil pessoas estavam em situação de rua no Brasil. Em 2022 houve um aumento de 38% ultrapassando 281 mil pessoas. Esse crescimento foi maior em comparação com a expansão populacional no mesmo período. Desse número, aproximadamente 70 mil eram crianças, de acordo com a ONG Visão Mundial. Entre essa população, as mulheres são as principais vítimas de agressões, representando 50,8% dos 17.386 registros de violência ocorridos contra pessoas em situação de rua, segundo dados do Ministério da Saúde.

Os agressores tendem a ser desconhecidos (37% dos casos), amigos e conhecidos (33%), familiares (6%) e parceiros conjugais (5%). Importante ressaltar que em muitos casos há uma subnotificação em relação a violência sofrida por parceiros íntimos provocados pelo machismo estrutural.

Apesar de representarem uma minoria nas ruas, as mulheres registram mais casos de violência do que os homens, sendo 92% das ocorrências notificadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) classificadas como físicas. As violências psicológicas e de outras ordens estruturantes não são ainda quantificadas de forma mais efetiva dentro do universo de violações de direitos sofridos por meninas e mulheres em situação de rua.

Dos estudos e números para o encontro com meninas e mulheres em situação de rua

Mulheres em situação de rua transitam com medo na rua Duque de Caxias, centro do Recife. Foto: Alcione Ferreira

Nas esquinas sombrias das ruas do centro do Recife, histórias entrelaçam-se, silenciosas e carregadas de dor. Há presença de mulheres e meninas, que enfrentam uma realidade difícil, tentando não serem apagadas e fugir da violência nos centros urbanos. São histórias de sobrevivência e vulnerabilidade, gravadas em suas peles e nas marcas invisíveis de suas almas. Conversamos com algumas dessas meninas e mulheres, mães e filhas de uma sociedade que insiste em ignorá-las e violentá-las em seus corpos e existências.

Amara, 51 anos*

Amara, 51, é uma dessas mulheres cuja jornada na rua abrange um período impressionante de 16 anos e 09 dias, segundo sua própria contagem. Ela vagueia pelas ruas próximas a Praça da Independência, mais conhecida como Pracinha do Diario, no centro do Recife. Seu passado parece estar desvanecendo como fumaça, ela não lembra de muita coisa. Desentendimentos familiares a arrastaram para as ruas , onde agora chama de lar. Sozinha, cercada por outros na mesma situação, ela luta para recordar seu passado. As memórias se misturam num discurso confuso, mas mesmo em meio a essa turbulência, ela sabe que estudou até a oitava série e que é filha de Ubiratan e Francisca.

Ana, 30 anos*

Ana traz consigo uma carga de 06 anos de convívio com as ruas, uma batalha que começou por causa do laço complexo com as drogas. As sombras do vício a envolveram, arrastando-a para a condição de dependente química. Vive com o marido que está na mesma condição. Ela também enfrenta a violência, inclusive nas mãos de seu companheiro e de outros homens que compartilham o largo em frente a Igreja do Rosário dos Homens Pretos, centro do Recife. Uma ferida em sua cabeça é a prova tangível da violência nas ruas lhe infligiu: havia três dias que um homem desconhecido desferiu-lhe uma pedrada na cabeça. Ana também é mãe de cinco filhos, todos estão com seus familiares na cidade de São Lourenço da Mata. A separação entre eles é mais uma ferida aberta em sua vida, só que não visível.

Alda, 77 anos*

Alda retrata a tragédia de uma vida que escapou por entre os dedos durante os últimos 02 anos nas ruas. A pandemia atirou-a em um abismo de exclusão e desespero. Ela vive em um estado perpétuo de medo, encontrando abrigo nas sombras da noite, apoiada por um muro que a protege das iminentes ameaças que rondam os cantos escuros da cidade. Ela compartilha os horrores que as mulheres enfrentam à noite, com o medo constante de assédio e violência: “Você não sabe o que os homens aqui fazem com as mulheres.  Aquela ali mesmo (aponta para Ana) leva cada cacete do marido, sem falar nos que pega as meninas aqui de madrugada pra dar murro ou pra querer outras coisas [estupro]. Na hora de dormir você tem que ter um grupo certo, pra ficar tudo coladinho na mesma calçada, um dorme e outro tá de olho aberto, pra não ser atacada, sem falar os que espera você dormir pra lhe roubar”.

Lúcia, 25 anos*

Está com marido e uma filha de 04 anos vivendo nas ruas desde que engravidou da menina que se chama Jéssica*. Antes morava em casa com o pai até ele descobrir a gravidez e a expulsar de casa. Passou toda a gravidez nas ruas e aos sete meses teve uma séria convulsão e ficou internada no hospital Barão de Lucena onde deu a luz. Mãe e filha ficaram internadas durante dois meses e em seguida voltaram para as ruas do centro do Recife, próximo a avenida Guararapes. Diagnosticada com epilepsia, Lúcia consegue a medicação através dos postos de saúde da região. Sua mãe faleceu quando tinha 15 anos. Não lembra até que ano foi para escola mas lembra o motivo que fez com que a família a tirasse dos estudos: os constantes episódios de convulsão. Falou que Jéssica, sua filha, começou a estudar esse ano, que o avô conheceu a neta, mas mesmo assim ela e sua família continuam nas ruas. No meio da conversa pergunto o que Jéssica* quer se tornar quando crescer, ela tira a chupeta da boca e responde sorrindo: “Policial”, pergunto o por quê e a criança responde enquanto simula esganar o pescoço de Lúcia com as mãos: “Pra te prender”. Em seguida pergunto como é a relação com a polícia e as pessoas em situação de rua naquela área, Lúcia responde que não é boa, os agentes costumam tratar mal principalmente os que ficam na pracinha do Diario, a maioria homens.

Em tempo

De acordo com nota divulgada pela Agência Brasil o Ministro Alexandre de Moraes, membro do Supremo Tribunal Federal (STF), estipulou a partir do final de julho deste ano um prazo de 120 dias para que o Governo Federal elabore um plano nacional direcionado à população em situação de rua no Brasil. A determinação é baseada numa ação movida no STF pelo PSOL, a Rede Sustentabilidade e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Os proponentes alegaram que o Poder Executivo e o Poder Legislativo têm se mostrado negligentes ao longo do tempo na implementação de políticas voltadas para pessoas nesta condição, as quais estão delineadas em um decreto presidencial datado de 2009.

Moraes sustentou a perspectiva de que o Poder Judiciário deve intervir nessa temática, visando empreender esforços para coibir a persistência da violação dos direitos humanos.

Espera-se que dentro dessa elaboração o recorte de gênero seja considerado como primordial e mesmo imperativo diante de todo o quadro vulnerável e violento ao qual meninas e mulheres vem sendo vítimas há anos.

*Nomes fictícios para preservar as identidades das meninas e mulheres entrevistadas

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