Nossa Voz

Me gritaram negra: experiências de educadoras quilombolas do Sertão de Pernambuco

| 20 de novembro de 2023
Arte e reportagem: Mariana Moraes

O trecho acima foi retirado do poema Me Gritaram Negra da coreógrafa, folclorista, estilista e ativista afro-peruana Victoria Santa Cruz. Apesar de uma distância de 2.573 km separar o Brasil do Peru, as experiências vivenciadas por habitar um corpo negro podem ser semelhantes, especialmente em países latino-americanos colonizados por europeus. É quase um palavrão. Um termo que desnorteia. Descobrir-se negra pode soar como uma maldição.

São gerações lutando contra o sentimento de não pertencimento. Consumindo produções voltadas para e por brancos e não se enxergando nelas. Cientes de que suas expectativas podem ser reduzidas apenas pelo tom de pele. Em nosso país, as vítimas de crimes violentos têm cor específica: de acordo com o estudo “Violência armada e racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade racial”, do Instituto Sou da Paz, dos 30 mil assassinatos por agressão armada em 2019, 78% foram contra pessoas negras.

As agressões podem começar aos sete ou cinco anos. Estão lá desde o nascimento. “Ela tem quadris largos, é parideira”, “é forte, pode aguentar a dor”. Conforme o estudo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, realizado pela Fiocruz em 2017, em casos em que foi realizada a episiotomia, um corte abaixo da vagina para facilitar o nascimento do bebê em partos normais, as mulheres negras receberam menos anestesia local em comparação com as mulheres brancas.

São dados difíceis de encarar. E essa é outra barreira ao falarmos sobre pessoas negras: dados. A população quilombola foi inserida nos levantamentos censitários brasileiros pela primeira vez na história em 2022, revelando que há 1.327.802 quilombolas em todo o país. A maioria (68,2% – aproximadamente 905 mil pessoas) vive nos Estados do Nordeste brasileiro. Ao todo, os territórios quilombolas estão presentes em 1.696 municípios.

A escola, onde passamos quase 10 anos de nossas vidas, pode ser um terreno de desrespeito também. De acordo com pesquisa do Cendhec, cujos primeiros dados foram apresentados durante o seminário “Meninas por uma Educação com Igualdade, uma em cada quatro meninas sofre preconceito no ambiente escolar. Segundo o levantamento, 26,9% das meninas entrevistadas afirmaram terem sido afetadas por algum tipo de prejulgamento/repúdio em suas instituições de ensino. Das vítimas, 38,1% atribuem a ação ao racismo: 27,1% por ter cabelo crespo/enrolado; 11,0% por ser negra. Esses números são resultado da escuta de 438 estudantes do ensino fundamental II das redes de ensino municipal público do Recife, Camaragibe e Igarassu.

Quando trazemos o enfoque para a educação quilombola, percebemos que muitas meninas e meninos quilombolas enfrentam desafios nessa área. Estima-se que existam 2.526 escolas quilombolas e 51.252 docentes nessas instituições, de acordo com o Censo Escolar de 2020. Segundo a Pesquisa Coletivo Educação CONAQ – 2019, 83% dos quilombos registrados possuem escola no território, 5% das comunidades têm a escola fechada e 9% não possuem escola no território. O número de estudantes matriculados enfrentou uma queda significativa em um ano. Em 2019, 306.131 alunas e alunos estavam matriculados, e em 2020 esse número caiu para 275.162. A pandemia foi um dos catalisadores.

Para professores não é diferente. O Censo da Educação Básica de 2020 identificou que apenas 3,2% dos docentes de escolas quilombolas realizaram cursos voltados às temáticas da educação das relações étnico-raciais e cultura afro-brasileira e africana, assim como cursos voltados à interculturalidade e diversidade. Esse dado é permeado de diversos significados, e a falta de acesso a materiais e vagas para formação são alguns deles. A mesma pesquisa indicou que apenas 30% das escolas em áreas quilombolas possuíam acesso a material didático específico para a diversidade sociocultural das comunidades quilombolas, conforme estabelecido pelas Diretrizes em 2018. Esse dado sequer foi considerado em 2019 e 2020. As escolas quilombolas com bibliotecas ou salas de leitura representam um percentual baixo em relação ao total de escolas. Em 2020, apenas 21% do total de escolas quilombolas apresentaram a existência desse equipamento.

O Cendhec, devido à sua atuação com comunidades tradicionais no Sertão de Pernambuco, também tem trabalhado com estudantes, membros das instituições escolares e da rede de proteção de crianças e adolescentes desses locais, e pôde constatar, in loco, como raça e território afetam a vida dessas pessoas. Ouvimos de educadoras quilombolas suas experiências.

 “Aos meus 15 anos, aproximadamente, passei por situações que até hoje marcam a minha vida. Morava na zona rural e comecei a estudar na cidade. Devido à falta de transporte, por um determinado momento a gente passou a usar como transporte escolar uma caçamba. Nesse período, quando a gente chegava na cidade, os alunos que moravam lá, pessoas brancas ou não, apontavam a gente como inferiores. Julgavam a gente. Diziam lá vem o carro do lixo, lá vem a carrada de esterco. Isso me marcou muito. Passei muito tempo com esse sentimento de inferioridade, mas graças a Deus superei, tenho duas graduações, duas pós-graduações, sou professora, quilombola e negra. Tenho orgulho da minha história”, dividiu Marta Alves da Silva, professora da comunidade quilombola de Viturino, território Águas do Velho Chico

Maria Ivaneide Gomes dos Santos, professora quilombola também de Viturino, enfrentou o peso da cor no início da sua vida profissional. “Quando eu estagiava em uma escola particular, no tempo do magistério, ao chegar na porta as crianças me recebiam gritando ‘olha, a pretinha chegou!”, relembra. “Quando era eu e outra colega, ficava aquele coral na sala, ‘as pretinhas, as pretinhas’, aquilo, quando eu ainda não tinha o conhecimento sobre a minha história, o empoderamento da minha cor, me sentia desmotivada. Mas, com o passar do tempo, se alguém olhar pra mim e disser ‘olha a pretinha’, eu vou dizer ‘sou preta, sou negra mesmo porque eu sou eu, e ninguém me copia.”

Marta e Maria nos mostram que quando nos apropriamos da palavra, ela pode deixar de ser ‘maldição’. Porque não é apenas um termo, ou condição. Ser negro e negra é uma dança ao redor das provações, é fraquejar diante das barreiras impostas. Mas ser negro e negra é também resistir. É insistir na beleza. É tomar pra si o que muitos insistem em negar. Ser negra e negro é teimosia, inquietude. Está na dança, na trança, no som. É negritar direitos, é aquilombar para chegar onde se quer. Está na tradição oral, no sabor da comida. A cor preta, está na tv, no tribunal como juiz. Pode estar nos ministérios, na política, na ciência e na sala de aula.

E a voz que fala o contrário terá que ouvir que ser preto é lindo. As armas que vitimam vão lidar com as sementes que brotam dos momentos de dor.

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