Texto: Lenne Ferreira | Foto: Alcione Ferreira
“Muitas vezes, o trabalho das/os educadoras/es que se propõem a construir uma sociedade antirracista e não sexista é um trabalho muito solitário. Não vira uma política de rede educacional”. A observação é da educadora Odailta Alves, mulher negra, lésbica, escritora, atriz e ativista pelos Direitos Humanos, com ênfase em práticas antirracistas e de igualdade de gênero. Com 27 anos de atuação, Odailta concedeu uma entrevista para o portal Afrontosas onde questiona um modelo de educação que ainda reproduz sexismo e outras formas de opressões sem contribuir para a emancipação de meninas e mulheres.
Nascida na favela de Santo Amaro, Centro do Recife, Odailta é servidora das redes públicas de ensino de Pernambuco e do Recife, onde leciona Língua Portuguesa. Seu histórico de ativismo pela população negra e pela promoção da qualidade de ensino fez com que fosse convidada pela Secretaria de Educação do Estado para conduzir formações antirracistas com gestões escolares, corpo docente e estudantes. No mesmo ano, assumiu o desafio de atuar como vice gestora da Escola Arquiteto Alexandre Muniz, da rede municipal, onde foi fundamental para a mobilização do projeto “Na trilha da Educação. Gênero e políticas públicas para meninas”, que conta com apoio do Fundo Malala e é desenvolvido pelo Centro Dom Helder Camara em parcerias com as secretarias de educação da capital, de Camaragibe e Igarassu.
Escritora independente, com seis livros publicados, Odailta usa sua escrita para questionar os resquícios da colonização na sociedade brasileira. Clamor Negro (2016), Cativeiro de versos (2018), Letras Pretas (2019) e Nenhuma Palavra de Amor (2021) – POEMAS. E o Escrevivências – contos (2019) estão entre suas obras autorais. Também é vencedora nacional dos concursos de poesia Da Casa de Espanha (2016) e do Elas por Elas (2019).
A arte que Odailta produz também se constrói na sala de aula, onde vivenciou mais de duas décadas de carreira como professora. “A minha arte acaba sendo ferramenta para promover diversas reflexões tão necessárias para os Direitos Humanos”, conta. Atualmente, está licenciada para concluir o doutorado em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco, desenvolvendo uma pesquisa sobre a influência Yorubá no Português do Brasil usado nas casas de Axé do Recife.
Confira a íntegra da entrevista que Odailta concedeu ao portal Afrontosas sobre Educação Não Sexista a partir de suas vivências enquanto professora da rede pública de ensino de Pernambuco.
“A gente precisa que a escola seja um sistema em prol da construção de uma identidade escolar que respeite toda uma diversidade, que coloque em prática todos os dias uma educação anti sexista.
Afrontosas: Meninas e mulheres dominam as estatísticas sobre evasão escolar no Brasil. Quais fatores você acredita que contribuem para este cenário?
Odailta: Entre os fatores estão essa sociedade misógina e patriarcal que desde cedo acredita que as meninas têm que estar nesse lugar de cuidar da casa. Mas quais meninas são essas? São as meninas pobres, das favelas, pretas em sua maioria, que, desde cedo, são colocadas para tomar conta de casa e filhos da branquitude. Esse lugar de trabalho doméstico tão naturalizado acaba contribuindo muito com esse processo de evasão escolar. Sem contar também os altos índices de adolescentes grávidas, a maioria também negra, que viram mãe solo e não consegue ter uma rede de fortalecimento para ajudá-las no processo de retorno à escola. Muitas violências sofridas no próprio espaço escolar e que é naturalizado e faz com que essa menina não se sinta pertencente a esse espaço. Como essa escola constrói o imaginário dessa menina a partir do conteúdo.
Eu não acredito na evasão, mas sim na expulsão. De certo modo essas meninas são colocadas pra fora da escola, pq não é criada uma rede de permanência.
Afrontosas: Com base na sua vivência como educadora da rede pública de educação, você percebe o afastamento de meninas da escola? Consegue identificar os motivos?
Odailta: Vejo muitas meninas não retornando para a escola porque estão tomando conta dos irmãos caçulas. Lamentavelmente, a mãe é a única pessoa que coloca sustento dentro de casa. Essa mãe vai buscar o sustento, muitas vezes cuidar do filho da branquitude e os seus e as suas ficam em casa. A escola acaba não sendo esse espaço que consegue realmente garantir essa permanência dessa menina na escola. Poucas são as meninas que conseguem voltar para a escola. Muitas vezes a responsabilidade do filho é colocada só nas costas dela. A menina vai achar que a vida acabou por causa disso. Em uma família de classe média, todo suporte é dado e a jovem continua sua vida. Mas na realidade da favela a logística é outra. Muitas vezes não tem nem quem fique com essa criança.
Afrontosas: Como você reflete sobre o papel da escola e do/da docente na construção de uma sociedade não sexista?
Odailta: O papel da escola nessa construção é fundamental. Até porque quando você tem um espaço que possibilita essas discussões dentro de casa, na sua comunidade ou algum coletivo é muito emancipador. Mas nem todo território tem essas discussões ocorrendo. Então, a escola como espaço institucional, que vai contribuir para esse processo de educação, ela precisa ter esse comprometimento de construir uma sociedade igual para todos, todas e todes. Agora, é saber se há interesse dessa escola construir essa sociedade. Porque, muitas vezes, a escola acaba servindo de ferramenta para fortalecer e reproduzir as opressões.
Afrontosas: Você percebe um esforço das gestões escolares para promover mudanças?
Odailta: Eu questiono muito se é interesse dessa escola construir uma sociedade não sexista, não racista, não lgbtfobica, Uma coisa é teorizar. Outra coisa é realmente o que se pratica. É dada formação? Quando não se coloca e não se pratica essa educação para os direitos humanos tem alguma consequência? Será que é prioridade respeitar as identidades, construir uma sociedade não misógina? Muita gente só vai ter acesso a essas discussões no ambiente escolar mesmo. Nos dias de hoje, a gente tem um processo muito perigoso de militância neopentecostal que vai colocar a mulher como submissa. A mão da igreja entrando na comunidade como uma reprodutora de violências. O estado precisa entrar também por meio da Educação oferecendo políticas para amenizar as desigualdades.
Afrontosas: Quais os principais desafios enfrentados pelos profissionais para tentar construir uma Educação anti sexista e que combata as opressões?
Odailta: Muitas vezes, o trabalho das/os educadoras/es que se propõem a construir uma educação antirracista e não sexista é um trabalho muito solitário. Não vira uma política de rede educacional. Geralmente, é um professor ou professora, que já é militante, e vai desenvolver projetos pontuais e vira referência dentro daquela escola. A gente precisa que a escola seja esse sistema em prol da construção de uma identidade escolar que respeite toda uma diversidade, que coloque em prática todos os dias uma educação anti sexista, anti racista, anti lgbtfóbica, anti gordofóbica. Uma escola que pregue o respeito e equidade. O principal desafio é construir essa rede. É muito difícil convencer colegas a abraçarem projetos com esse viés. Muita gente ainda vê como “mimimi”. Descobri que a solução é me alinhar e me abraçar com o corpo discente, que são os estudantes. Quando se tem uma gestão que apoia é fundamental porque uma gestão que persegue é muito adoecedora para gente tá remando contra essa maré de violências. Outro desafio é a falta de formação continuada que, muitas vezes, não tem. O governo precisa proporcionar formações e divulgar amplamente. É muito válido colocar em prática essa Educação, principalmente quando a gente percebe a transformação ocorrendo no espaço da sala de aula, quando a gente percebe que tá formando meninas empoderadas, meninos não violentos e mais sensíveis.
Afrontosas: Como poeta e educadora você acredita que sua arte também é uma ferramenta para promover igualdades dentro do ambiente escolar?
Odailta: Com certeza a minha arte acaba sendo ferramenta para promover diversas reflexões tão necessárias para os Direitos Humanos. Mesmo sem estar na posição de professora diretamente, dando formação, eu faço questão de estar dentro das escolas dialogando com as/os estudantes e eu sempre vou com poesia, teatro. Mesmo ocupando cargo de gestão, fiz muita atividade recitando, sempre fazendo movimentos de construir peças de teatro com as/os estudantes sobre a questão a violência contra mulheres, a questão do racismo, lgbtfobia. A arte, para mim, é um instrumento poderosíssimo para a conscientização, empoderamento, sensibilização dos pais para algumas temáticas. É a arte e o seu poder de chegar em alguns espaços, que nem sempre a agente consegue de outras formas, e tocar as sensibilidades mesmo. Meu local de professora sempre vai dialogar com o meu local de artista. A arte sempre vai atravessar as práticas pedagógicas em todos os espaços.