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Em Três Ladeiras, Eulália Maria promove pedagogia da transformação

| 31 de agosto de 2022
Há 1 ano e seis meses, Eulália tenta fazer a diferença na vida de adolescentes do Distrito de Três Ladeiras

Texto: Lenne Ferreira | Imagens: Mariana Moraes

Ao ensinar os pais a ler e escrever, Eulália Maria aprendeu a encontrar o próprio rumo, que a levou para o distrito de Três Ladeiras, na área rural do município de Igarassu. Lá, a pedagoga faz da Educação uma ferramenta para mudar a lógica perversa do patriarcado na vida das meninas. Natural de Vicência, na Zona da Mata pernambucana, Eulália não imaginava que encontraria mais sentido para a sua atuação profissional em um local que só conhecia de nome. Há um ano e seis meses, ela recebeu a missão de assumir a gestão da Escola Evangelina Delgado de Albuquerque e iniciou um trabalho transformador com estudantes que dividem suas vivências e expectativas de futuro em rodas de conversas que têm como principal objetivo ampliar o horizonte de oportunidades para as meninas.

A experiência de instruir os pais, Precilio e Maria da Penha, que eram analfabetos, ajudou Eulália a entender qual profissão queria seguir. Antes de se formar em Pedagogia e Licenciatura em Matemática, ela estudou Contabilidade. Mas o interesse em ajudar na formação de outras pessoas sempre a acompanhou desde muito cedo, por isso se envolveu em projetos sociais como voluntária, o que foi fundamental para desenvolver metodologias de atividades com grupos.  “O que me levou a estar na Educação foi alfabetizar meus pais, fazer com que eles pudessem chegar no banco e saber assinar o nome deles. Foi daí que surgiu esse desejo, quando eu percebi a força de vontade que eles tinham”, conta Eulália.

A fala tranquila e afetuosa da pedagoga conquistou as estudantes da escola municipal de Três Ladeiras, em Igarassu, cidade situada na Região Metropolitana do Recife. A partir da experiência com as jovens, a gestora percebeu que, apesar da aproximação com a capital pernambucana (27 Km), o local ainda perpetua uma realidade que é herança do período colonial, da exploração da cana-de-açúcar, que sustentou e ainda sustenta um ciclo de opressões. Um dos primeiros povoamentos do Brasil – os europeus chegaram à região no século XVI, quando a cidade era habitada pelos povos Caetés -, Igarassu tem o templo católico mais antigo do país, a Igreja dos Santos Cosme e Damião. Possui ainda um centro histórico com diversos monumentos reconhecidos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), como o Museu Pinacoteca, cujo acervo é considerado a mais importante coleção do período colonial.

Sobre a estrutura econômica de Igarassu,  o professor e pesquisador na Universidade Católica de Pernambuco no Programa de Pós-Graduação, Ricardo Pinho Souto, analisou as consequências ambientais e impactos na vida das pessoas. “O monocultivo da cana-de-açúcar e o crescente comércio de seus produtos proporcionaram não só o crescimento e “desenvolvimento” da região e a ascensão de colonizadores, mas também a escravidão do povo negro e a sujeição do negro ao branco, o genocídio cruel aos Caetés e a outras etnias indígenas que habitavam a região, a sujeição e destruição das matas, de muitos dos animais, dos corpos hídricos que contribuíam para a manutenção do equilíbrio do ecossistema e passaram a ser um dos sustentáculos da produção canavieira”. O trecho faz parte do artigo “Fundamentos ético-político-econômicos e preservação do meio ambiente: um estudo de caso em Três Ladeiras, Igarassu – PE”, publicado na revista Ágora Filosófica.  –

Mesmo com o processo de falência de usinas importantes para a economia da região, a população de Três Ladeiras ainda encontra na cultura canavieira uma alternativa para garantir renda familiar. Eulália conhece bem essa dinâmica. Na sua infância, em Vicência, ela e sua família também garantiram sustentabilidade a partir do trabalho do pai, que atuava em uma usina local. “O meu pai trabalhava em uma usina e criou os 10 filhos assim”, relembra. A fase de restrições financeiras e alimentares exigiu de sua mãe, Dona Maria, muita resiliência e improviso. “Ela comprava 5 cadernos, dividia e transformava em 10 para todo mundo poder estudar.  Por eles não terem tido a mesma oportunidade nos incentivam a estudar para mudar a realidade não só nossa como da família toda. Quando o caderno apagava, minha mãe pegava papel de pão e fazia de caderninho”, relembra Eulália. O empenho de Dona Maria deu tão certo que, das cinco filhas mulheres, três se tornaram professoras. 

Em algumas áreas de Igarassu, essa ainda é a realidade vivenciada por muitas famílias. Nem toda família, no entanto, consegue manter os filhos na escola. A necessidade de sobrevivência faz com que muitas (os) jovens parem de estudar para assumir postos de trabalho. Para as meninas, os cuidados com a casa, irmãos e até casamentos arranjados com homens mais velhos ocupam o espaço que deveria ser da escola. O destino desenhado para a maior parte das adolescentes de Três Ladeiras inquietou Eulália. “Foi a partir das rodas de conversa na biblioteca da escola que eu descobri que Três Ladeiras tem um número alto de casamentos infantis. São meninas de 12, 13 anos que deixam os estudos para tomar conta de uma casa com homens bem mais velhos do que elas. Foi isso que me fez trabalhar a questão de gênero para que elas valorizem o estudo e entendam que o único caminho não é o casamento”. 

Encontros promovidos pela gestora acontecem na biblioteca da escola

A percepção da gestora sobre o tema foi ampliada quando ela conheceu o projeto Na Trilha da Educação. Gênero e Políticas Públicas para Meninas”, que é desenvolvido pelo Cendhec com apoio do Fundo Malala. “O projeto me tocou muito enquanto educadora porque eu estava em contato com as meninas, trabalhando questões de gênero, que, para elas, era algo desconhecido. Na sala da biblioteca, onde me reúno com elas, discutimos temas que elas nunca tinham ouvido falar”, pontua. Além dos temas propostos pela gestora como racismo, machismo e política, as jovens também propõem assuntos para serem discutidos coletivamente.

A atuação de Eulália é reverenciada por Paula Ferreira, pedagoga do Cendhec e ativista da Rede Malala, que conheceu e acompanha seu trabalho. “Poderia trazer diversos aspectos sobre como eu percebo a importância do compromisso de Eulália como gestora e como ela tem contribuído para romper com os ciclos de violência relacionados à desigualdade de gênero que é muito presente nas escolas de modo geral, mas destaco a participação de um grupo de meninas no futebol, que só foi possível a partir da sua atuação na escola Evangelina”, relembra. Para ela, é fundamental que  as/os profissionais da Educação atuem nos enfrentamentos às discriminações entendendo que é um papel também da escola, assim como de toda a sociedade.

“Eulália compreende muito do seu papel e da importância de uma educação igualitária para melhorar a vida dos/as estudantes, em especial das meninas que tem as suas vidas ainda mais impactadas nos seus processos de aprendizagem na escola por serem meninas. Eulália, ao entender das barreiras que elas enfrentam por serem meninas, negras em sua maioria, e que são moradoras de uma área rural onde há uma naturalização do machismo, tem se empenhado de forma muito sensível para que todas tenham direito à equidade”, assinala Paula. 

“A Educação salvou a minha vida e da minha família e está salvando a vida das meninas de Três Ladeiras que não sonhavam e, hoje, estão sonhando”

O olhar atento de Eulália também identificou outro problema que afastava as meninas da escola em alguns períodos do mês. “Nas nossas conversas, eu queria saber o porque que, em algumas datas, elas não estavam na escola. E era porque elas estavam menstruadas e ficavam com vergonha”. A partir dessa descoberta, Eulália buscou apoio da gestão municipal, que passou a fornecer absorventes para as jovens mensalmente, uma conquista que impactou diretamente na saúde mental das estudantes e diminuiu o número de faltas. 

Miriam Kirubel, gerente do programa da Rede Global de Ativistas pela Educação do Fundo Malala, participou da homenagem à Eulália promovida pelo Cendhec

“Eulália é uma gestora disruptiva. Enquanto a tendência em geral das pessoas que atuam na educação é dar atenção aos desafios. Eulália reconhece os desafios, mas enxerga muito mais oportunidades. Ela olha para a comunidade de Três Ladeiras como uma comunidade de muitas potências e potencialidades e foca o trabalho dela nisso”, pontua Mônica Dias, diretora de ensino da Secretaria Municipal de Igarassu. Mônica observa que Eulália tem como estratégia a atuação em rede. “Ela não gerencia a escola sozinha. Ela traz pra junto todos os atores. Estratégia de inteligência e sensibilidade também. A escola de Eulália é naturalmente um colegiado. Nesse sentido, o que ela faz soltar aos nossos olhos é que a postura do professor/gestor faz total diferença diante da realidade das meninas”. 

O resultado da dedicação da gestora já pode ser sentido nas falas e empoderamento das meninas da escola Evangelina. Elas participaram de um encontro  na sede do Cendhec, onde também estavam presentes representantes do Fundo Malala. Na ocasião,  duas jovens, Shara Raquel e Monyky Maria, representando as estudantes da escola Evangelina do grupo acompanhado(as) por Eulália, além de membros da secretaria de educação de Igarassu, falaram sobre as mudanças em suas visões de mundo. “Antes, eu tinha vergonha da minha cor e do meu cabelo. Agora, sinto orgulho”, disse Shara. Monyky também já entende que seu lugar é onde ela quiser estar. “As mulheres podem ocupar todos os lugares que elas quiserem porque nós temos os mesmos direitos que os homens”, cravou, enchendo Eulália de orgulho.

Com 16 anos de atuação e muita crença no poder de transformação da Educação, Eulália diz que suas maiores referências são seus pais, que a estimularam a nunca parar de estudar. A partir da experiência que tem desenvolvido na escola Evangelina, a gestora conquistou respeito da rede de Educação e recebeu uma homenagem da equipe Cendhec. O reconhecimento que tem recebido não diminui o senso de responsabilidade nem os desafios que precisa enfrentar diariamente. “Para mim é muito prazeroso, embora muito desafiador. Eu vivo uma adrenalina todos os dias e sei que não estou lá por acaso. Mas o que me motiva é olhar nos olhos das meninas e ver esperança”. 

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