Nossa Voz

Elas ocupam as ruas

| 22 de março de 2022
A Batucada feminista do ato 8M contou com a presença de integrantes do projeto Cunhatã, do Grupo Curumim

Texto: Lenne Ferreira | Ilustração: Alcione Ferreira | Imagens: Grupo Curumim

Ao longo dos anos, o movimento feminista criou estratégias para ocupar a agenda legislativa e conquistar direitos. Diante das atrocidades produzidas pelo patriarcado, o Dia Internacional da Mulher acabou se tornando um marco de luta. Assim, o 8 de março se estendeu para todo o mês e fomenta reivindicações em defesa da igualdade de gênero na sociedade. Manifestações de rua reúnem mulheres diversas em suas raças, identidades e classes sociais. No contingente, também estão meninas ativistas que, atravessadas pelas mais diversas formas de opressão desde a primeira infância, levantam-se contra as desigualdades de gênero e ocupam seus lugares no fronte.

Em Pernambuco, o último 8M, articulado por diversas entidades feministas, reuniu cerca de oito mil mulheres que percorreram ruas do Centro do Recife para pedir pelo fim da fome, do feminicídio e do transfeminicídio. Ainda na concentração, que aconteceu no Parque 13 de maio, chamava a atenção algumas jovens do Grupo Curumim, ONG feminista que desenvolve projetos de fortalecimento da cidadania das mulheres em todas as fases de suas vidas. Com adesivos, faixas e muita alegria, elas também carregavam instrumentos percussivos que foram usados ao longo de todo percurso.

Com apenas 14 anos de idade, Ayana Maisha, fazia parte do grupo festivo. Estudante do ensino fundamental e moradora do bairro da Estância, Zona Oeste do Recife, ela é uma das jovens contempladas pelo projeto Cunhatã (adolescente na língua Tupi Guarani), desenvolvido pelo Grupo Curumim, que estava a postos no ato do 8M. Foi a primeira vez que ela participou de uma ação organizada pelo movimento feminista na rua e não escondia a emoção. “Eu vim para a rua para me empoderar mais, denunciar e exigir direitos. Fazer as pessoas ouvirem nossa voz e o que passamos diariamente”, comentou. 

Pela primeira vez em uma manifestação pública, Ayana estava com uma sombra colorida e acompanhada por veteranas do movimento feminista. Assim como ela, Crislayne Ingrid, 17 anos, integrou a batucada feminista junto ao Fórum de Mulheres de Pernambuco. Eu nunca imaginei que seria assim, superou as minhas expectativas. É um movimento alegre, divertido, a gente conhece muita gente e escuta outras mulheres”, disse. 

Adolescentes assumem lugares de liderança na luta por direitos para as mulheres e meninas

Embora estejam numa fase de desenvolvimento, as ativistas já entenderam que suas existências estão ameaçadas pela violência de gênero, que foi mais acentuada no período de pandemia. Só em 2020, o país teve 3.913 homicídios de mulheres, dos quais 1.350 foram registrados como feminicídios, média de 34,5% do total de assassinatos. Um contexto que preocupa o movimento feminista e aponta para a necessidade de formulação de novas políticas públicas, além de medidas que tornem efetiva a aplicação da Lei Maria da Penha, um dos mais importantes instrumentos de defesa da vida das mulheres. 

Coordenadora colegiada do Grupo Curumim, Sueli Valongueiro é também coordenadora política e pedagógica do Programa Cunhatã, que oferece formação política para 20 meninas com idades entre 10 e 18 anos, e acredita na formação das meninas como estratégia para empoderamento, que precisa começar cedo. “A opressão vivenciada por mulheres e jovens nasce junto com elas. Ao nascer com o sistema reprodutor feminino já se define quais iniquidades em relação à qualidade de vida lhe esperam ao longo da vida seja na infância, seja na juventude ou na vida adulta. E quando ela é agregada a outras identidades de raça, cor, etnia, classe social isso só se agrava. Sendo assim, adolescentes negras e de baixa renda têm maior probabilidade de serem colocadas em diversas vulnerabilidades.”

Sueli explica que é na infância e na adolescência que parte expressiva das meninas sente em seus corpos as primeiras marcas da violência, dentre elas sexuais, do racismo, da negligência e do trabalho doméstico. “É um contexto que interfere na vida, na escolaridade, na autoimagem  e que por certas vezes paralisa as meninas colocando elas em sofrimento e solidão. A escola e a família são os primeiros territórios de socialização das meninas, onde são ou deveriam ser ambientes de construção de relação de confiança e acolhimento”, pontua.  Apesar da importância desses espaços para a formação das meninas, Sueli observa que eles têm sido negligentes na escuta e no cuidado, assim como o estado, que tem negligenciado o acesso a direitos básicos. 

Consciente dos desafios impostos às mães de meninas, a professora Luzinete Silva, que mora na Macaxeira, tem apresentado as pautas de gênero à filha, Mariana Souza, de 11 anos. Este ano, pela primeira vez, ela levou a menina para o ato 8M. As duas caminharam juntas à comitiva da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, que fez reivindicações contra o racismo, gordofobia e desemprego. “Essa luta é contínua, por isso levamos nossas filhas para os atos porque é uma forma de mostrar o caminho assim como fizeram as mulheres que vieram antes de nós”, conclui ela. 

Pela vida das meninas e mulheres 

“Acredito que as mulheres precisam de mais igualdade neste país e o Governo precisa cair. A gente não aguenta mais esse governo facicsta, genocida. Nesta pandemia, muitas pessoas morreram, várias mulheres. Vamos pra rua para pedir igualdade de direitos”. A afirmação é de Crislayne Ingrid, de 17 anos, que mora em Iputinga, e também acredita na força da mobilização coletiva das mulheres e já tem consciência do seu papel na luta por direitos. Durante o ato 8M ela cantou palavras de ordem e pediu respeito. 

A inserção das meninas na luta por direitos é estratégica para garantir um futuro com mais dignidade para elas. “Despertar as adolescentes para refletir, ampliar e organizar os seus conhecimentos de vida sobre justiça social para dar-lhe condições de fazer uma leitura crítica feminista, interseccional, que permita também incidir no contexto das políticas públicas para a garantia de direitos é uma parte importante para que elas se sintam acolhidas, percebam as opressões e não abram mão da autonomia de seus corpos, das suas vidas e da vivência da cidadania”, defende a ativista Sueli Valongueiro, que acompanhou o grupo de adolescentes do Grupo Curumim durante o ato 8M deste ano. 

Em movimentos como a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, a atuação da juventude é também estimulada pelas lideranças mais velhas. Para Rosa Marques, uma das ativistas da rede, a formação de novas ativistas representa maior fortalecimento para as lutas travadas contra o racismo, misoginia e patriarcado.  

“Nós estimulamos as juventudes a assumirem papéis de liderança e formação política para promover uma renovação. As mais velhas vão partir e precisam contar com a força da juventude para continuar as lutas. Elas já estão nesse processo porque acreditamos que juntas, as mulheres de todas as gerações precisam estar juntas”, pontua. 

Mulher de axé, moradora do bairro do Ibura, ativista e integrante de movimentos como Periféricas e Revolução Preta , Maria Janielly aposta numa educação feminista. Mãe de Lua Maria, de 17 anos, ela não tem dúvida de que é importante apresentar as temáticas de gênero interseccionalizada por raça e classe para a adolescente, que também a acompanha em manifestações de rua. “Eu criei e crio minha filha direto para a guerra. Isso é um problema porque quando a gente está pronta para guerra o tempo todo, a gente não sabe receber afeto. Eu preparei as minhas filhas para uma guerra não porque eu queria nem porque era o meu desejo, mas porque era a única forma de mantê-las vivas. A militância e a cultura salvou a minha vida por diversas vezes e elas acompanham esse processo. Fomos salvas por esse movimento”. 

Janielly ao lado da filha, Lua Maria, que, aos 17 anos, já milita por melhorias para a vida das mulheres (Imagem: Jéssica Lopes)

Com a eleição do Governo Bolsonaro, a ativista tem buscado mais fortalecimento em meio a ações coletivas. “Por muito tempo eu me recusei sair da minha comunidade porque, na minha cabeça, era essencial estar lá e eu criei minhas filhas afirmando que a gente não tinha que sair do morro. Eu achava que era de cima do morro que a gente construiria revoluções. Mas a gente desceu depois que esse presidente foi eleito porque sozinhas não dá mais. Por mais que a gente atue com a comunidade toda, ainda assim precisamos encontrar refúgio e é nos atos de rua que encontramos nossos pares”. 

Desde os 4 anos de idade, Lua participa de movimentos de ativismo pelos Direitos Humanos e culturais. “Ela é muito empoderada, responsável e muitas vezes é chamada de raivosa. E para desfazer isso é um processo muito difícil. Muitas vezes ela parou como eu também parei porque é doloroso.  “A sensação de enxugar zelo e quando um cara como Bolsonaro se elege não é só uma sensação, é a prova que que voltamos à estaca zero, por isso precisamos continuar na luta, que muitas vezes nos deixa cansadas”. 

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