Nossa Voz

Elas lutaram pela abolição

| 13 de maio de 2022
A falta de registro e interesse do campo da pesquisa promoveram o apagamento de mulheres negras que lutaram pela abolição

Texto: Lenne Ferreira | Ilustrações Alcione Ferreira

Desde que o primeiro navio negreiro aportou em águas brasileiras, houve resistência negra contra a escravidão. Ao contrário do que fez parecer a literatura colonialista, o trabalho forçado nunca foi aceito de forma pacífica pelas africanas (os), que foram sequestrados pelos colonizadores portugueses. A conquista da liberdade pautou diversas revoltas e movimentos que foram cruciais para o processo de reconhecimento da humanidade da população negra no Brasil. A promulgação da Lei Áurea pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, foi resultado de uma série de ações que vão muito além de uma assinatura e que contaram com o protagonismo e articulação de mulheres negras.

“Existe uma memória compartilhada acerca do 13 de maio e da abolição da escravatura no Brasil que coloca a Princesa Isabel como uma personagem central”.  A afirmação é da historiadora Maria Emília Vasconcelos, professora de História e Cultura Afro Brasileira do Dep. de História e do Programa de Pós Graduação e História da UFRPE e do Mestrado em Ensino de História – ProfHistória UFPE.  “Isso se deve ao fato de que houve uma memória pública construída da proclamação da abolição, que ganhou mais notoriedade. Essa inserção da figura de Princesa Isabel, como diz Ana Lúcia Araújo, se deu durante o evento da abolição por meio da criação de cartazes, cédulas, selos comemorativos, monumentos públicos oficiais que a colocaram como a pessoa que concedeu a liberdade aos escravizados”, analisa Emília. 

Sob a influência do movimento abolicionista internacional, o Brasil foi o último país das Américas a abolir o sistema escravocrata. Nas décadas finais do século 19, leis como a Eusébio de Queiroz, a do Ventre Livre e a do Sexagenário abriram caminho para a formalização do fim da escravidão. Diversas rebeliões de escravizados nos quilombos ou na área urbana, como a revolta dos Malês, deflagrada em 1835, em Salvador (BA), entre outros atos de resistência liderados por negros libertos, pressionavam o regime imperial pelo fim da escravidão. Irmandades negras e o trabalho intenso de advogados, escritores e jornalistas negros que utilizaram a imprensa para defender a liberdade e a garantia dos direitos da população negra escravizada. Um movimento que os livros de história não dão conta uma vez que foram escritos pela narrativa colonizadora. 

A historiadora Emília observa que graças ao tensionamento gerado por movimentos negros, nos últimos anos, pesquisadores passaram a olhar com mais atenção para o tema do abolicionismo. “Desde o final da década de 80, em convergência comas questões colocadas pelo movimento negro, os pesquisaoress começarm a observar as experiências protagonizadas pela população negra para alcançar a liberdade. Fugas, quilombos, insurreições, revoltas, negociações cotidianas, acúmulo de economias para compra da alforria, negociações nos tribunais. Tudo isso começou bem antes das ações da Princesa Isabel e do Governo Imperial”, explica. 

O reconhecimento, no entanto, ainda não destaca a atuação das mulheres, que também foram fundamentais nas movimentações pela abolição. Aqualtune, Acotirene, Luiza Mahin, Esperança Garcia e Adelina são só alguns nomes de um contingente muito maior que atuou como lideranças ou nos bastidores da luta por igualdade racial. “ O processo de abolição contou com muitas pessoas negras engajadas. A gente tá falando de uma sociedade patriarcal onde os homens ocupavam os lugares de poder. Mas havia um conjunto de ações muito significativa por parte das mulheres para fazer ruir o edifício que era a escravidão. Então existiam mulheres que vendiam produtos na rua e acumulavam dinheiro para comprar alforrias delas e dos filhos. Negociavam cotidianamente formas de se libertar ou de tornar o cativeiro menos difícil. Essas mulheres fizeram muitas petições para reivindicar a lei do ventre livre para os seus filhos e filhas. Lutaram para ser reconhecidas como mãe.

“Havia um conjunto de ações muito significativo por parte das mulheres negras para fazer ruir o edifício que era a escravidão”.

Para a historiadora, a falta de registros do protagonismo negro contra a escravidão dificulta o reconhecimento do nomes femininos no processo de abolição. Aliado à escassez está a falta de interesse dos pesquisadores que pouco se debruçaram sobre a temática . “Se estudou pouco sobre nomes como Aqualtune e Acotirene porque temos poucos estudos sobre quilombos. A documentação esvazia a presença das mulheres nos eventos. Não há vontade de estudo por parte dos pesquisadores em relação a pensar na presença das mulheres nesse período. Estamos a passos muito lentos”, conclui. Um apagamento que, para Emília, se deve aos interesses de quem quer diminuir a presença, a luta e engajamento das pessoas negras. “Não tratar dessas experiências de luta do passado também quer fazer diminuir esses engajamentos e lutas no presente, o que é do interesse de quem não quer ver a população negra articulada, organizando, lutando e demandando direitos”, conclui. 

A seguir, a Afrontosas apresenta alguma dos nomes que foram fundamentais na luta por liberdade e igualdade do povo negro no Brasil.  

ESPERANÇA GARCIA

Mulher negra e escravizada, Esperança Garcia deve ser a autora do primeiro ‘Habeas Corpus’ que se tem registro no Brasil. Em 06 de setembro de 1770 uma carta foi enviada ao Governador da Capitania de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro. A carta denunciava violências e maus tratos praticados pelo administrador da fazenda em que morava e cobrava justiça e reparação. O documento veio a público em 1979, graças ao trabalho do historiador Luiz Mott, que descobriu uma cópia no arquivo público do Estado. Acredita-se que a carta original esteja em Portugal.

Atualmente, essa é considerada a primeira reivindicação, ou petição, de uma escravizada no Brasil que foi enviada a uma autoridade. Em setembro de 2017, Esperança Garcia recebeu, do Conselho Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PI), o título simbólico de primeira mulher advogada do Piauí, a pedido da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB-PI. 

Leia a carta de Esperança Garcia na íntegra:

“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que cai uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda, estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda aonde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha”

ADELINA, A CHARUTEIRA

Filha de uma escrava e com um senhor de engenho, Adelina nasceu e cresceu em São Luís, no Maranhão. O pai fez a promessa de que, quando ela completasse 17 anos, seria libertada, o que não aconteceu. Depois de perder boa parte de sua fortuna, ele viu a venda de charutos como uma alternativa para gerar renda e colocou Adelina como responsável pelas negociações e entregas. O negócio rendeu boas conexões na região e permitiu que ela tivesse acesso e participasse de manifestações em prol da abolição da escravatura. Do contato estreito com ativistas e vasto conhecimento da cidade, onde transitava com liberdade.  Ela aproveitou o prestígio para trabalhar em prol da libertação dos escravos, ajudando uma associação de estudantes conhecida como Clube dos Mortos, que ajudava a comprar alforrias e na fuga de escravos. Adelina informava aos abolicionistas sobre as ações da polícia.

TEREZA DE BENGUELA

Um ícone da luta pela abolição da escravatura, Tereza de Benguela fou uma escravizada fugida do capitão Timóteo Pereira Gomes. Casou-se com José Piolho, que chefiava o Quilombo do Piolho ou do Quariterêre, entre o rio Guaporé (atual fronteira entre Mato Grosso e Bolívia) e a cidade de Cuiabá, na década de 1740. Com a morte do marido, Teresa se tornou a rainha do quilombo, no início dos anos 1750. Sob sua liderança, a comunidade negra e indígena resistiu à escravidão por duas décadas. Para governar o quilombo, a rainha desenvolveu um regime parlamentar, onde, toda semana, se reunia com os deputados para deliberação de ações administrativas do quilombo. 

Rainha Teresa comandou a estrutura política, econômica e administrativa do quilombo, mantendo um sistema de defesa com armas trocadas com os brancos ou roubadas das vilas próximas. Os objetos de ferro utilizados contra a comunidade negra que lá se refugiava eram transformados em instrumentos como a forja. O Quilombo do Quariterê, desenvolvia agricultura de algodão e possuía teares onde se fabricavam tecidos que eram comercializados fora dos quilombos, como também os alimentos excedentes.

O quilombo foi destruído em 1770 pelas tropas de Luís Pinto de Sousa Coutinho. A população (79 negros e 30 índios), foi morta ou aprisionada e os sobreviventes foram expostos nas vias públicas, marcados em ferro com a letra F, de fujão, e devolvidos aos seus antigos donos. Houve resistência, liderada por Teresa, que revidou com arma de fogo, além de flechas, mas não foi o suficiente. Tereza foi aprisionada numa cela e, segundo relatam, ficou muda, e morreu dias depois. Sua cabeça foi arrancada e colocada no alto de um poste, dentro do quilombo, para que todos pudessem vê-la.

AQUALTUNE

Liderança lendária da história do Quilombo dos Palmares, Aqualtune teria nascido no reino do Congo, de linhagem real, e liderado uma parte dos guerreiros na Batalha de Mbwuila (Ambuíla), em 1665. Segundo historiadores, ela foi capturada e escravizada sendo trazida para a América Portuguesa, na atual região Nordeste. Ao chegar no Brasil, Aqualtune teria sido “batizada” por um bispo católico e para provar o batismo, foi marcada por uma flor com ferro quente no seio esquerdo. Logo após esse episódio ela foi enviada grávida para o engenho de Porto Calvo, onde tomou conhecimento do Quilombo dos Palmares. Nos últimos meses de gravidez organizou uma fuga para rumo ao núcleo de resistência, onde liderou um dos mocambos que recebeu seu nome. Ela deu à luz Ganga Zumba e Gana, que se tornaram chefes de dois dos mais importantes mocambos de Palmares. Posteriormente teria dado a luz a Sabina, que seria a mãe de Zumbi.

Aqualtune aparece mencionada nas fontes escritas pelos atacantes do Quilombo dos Palmares.  Em 1677, por ocasião dos ataques das tropas do capitão Fernão Carrilho contra o quilombo de Macaco, havia uma grande casa onde se reunia o Conselho de Chefes, entre os quais estavam Aqualtune e Ganazona, apresentados respectivamente como mãe e irmão do rei Ganga Zumba. Zumbi, teria sido o sobrinho dele, portanto neto de Aqualtune. Em documento do Conselho Ultramarino português datado de 1681, consta que, após a invasão do quilombo de Macaco, em 1577, foram aprisionados cerca de 200 homens, dois filhos do rei e a rainha. Ela era, pois, tia-avó de Zumbi, que assumiria a liderança dos palmarinos até 1695.

Apesar de ter sua história apagada pelos livros e escolas brasileiras, Aqualtune foi uma figura muito importante para a administração da sociedade palmariana. Ela simbolizou liderança e luta dentro do sistema escravocrata. 

LUIZA MAHIN

Considerada uma mulher inteligente e rebelde, Luiza Mahin pertencia à etnia jeje e foi transportada para o Brasil como escrava. Ela foi uma importante personagem de luta pela abolição da escravatura no Brasil. Sua casa tornou-se quartel general das principais revoltas negras que ocorreram em Salvador em meados do século XIX. Participou da Grande Insurreição, a Revolta dos Malês, última grande revolta de escravos ocorrida na Capital baiana em 1835. Quituteira de profissão, Luiza conseguiu escapar da violenta repressão desencadeada pelo Governo da Província e partiu para o Rio de Janeiro, onde também participou de outras rebeliões negras, sendo por isso presa e, possivelmente, deportada para a África. 

Além de sua herança de luta, Luiza deixou seu filho, Luiz Gama, poeta e abolicionista, que escreveria sobre sua mãe: “Sou filho natural de uma negra africana, livre da nação nagô, de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa, magra, bonita, a cor de um preto retinto, sem lustro, os dentes eram alvíssimos, como a neve. Altiva, generosa, sofrida e vingativa. Era quitandeira e laboriosa”. Luiza Mahin teve outro filho, lembrado em versos por Luiz Gama, cuja história é ignorada.

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