Texto: Lenne Ferreira | Ilusração: Alcione Ferreira
Principais vítimas de um sistema de opressões históricas sustentado pelo sexismo, meninas e mulheres têm suas trajetórias atravessadas pela morte nos sentidos concreto e simbólico. Quando não morrem de forma física, elas vivenciam a morte dos seus sonhos, aspirações profissionais e anseios pessoais. E morrem em vida. Para combater os efeitos nocivos do sexismo na sociedade, em 1991, a Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina e do Caribe (Repem) criou o Dia da Educação Não Sexista. A data tem como proposta promover o enfrentamento ao sexismo, que é uma forma de discriminação baseada no sexo biológico e que favorece um sexo em detrimento do outro.
A manutenção do sexismo se dá pela reprodução de conceitos que tentam reduzir a existência feminina a papéis predeterminados pelo patriarcado, um sistema social em que homens detêm o poder primário e predominam em funções de liderança e autoridade moral. Uma herança repassada de geração em geração, que estrutura a desigualdade de gênero e impacta diretamente o desenvolvimento de meninas e mulheres, que, no Brasil, somam 1,7 milhão entre 15 e 29 anos que não concluíram o ensino médio. O levantamento, feito pelo Instituto Unibanco, com base em dados do IBGE , demonstra a impossibilidade de acesso a melhores oportunidades e condições de vida, negando um futuro com mais dignidade para elas, que, desde muito cedo, são empurradas a assumir a função de cuidadoras ou de responsabilidade com serviços domésticos.
O estudo “Infância, Gênero e Orçamento Público no Brasil”, de 2019, apontou que questões como o machismo e a falta de verbas e políticas públicas de gênero influenciam adolescentes e mulheres tenham uma evasão escolar 29 vezes maior que os homens no país para cuidar da casa ou de alguém. O levantamento foi realizado pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente(Cedeca) do Ceará com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua da Educação 2018. A pesquisa mostrou que, na faixa de 15 e 29 anos, 23,3% das adolescentes e mulheres que tiveram que deixar os estudos alegaram que o fizeram para cuidar da casa ou de uma pessoa.
Outra pesquisa inédita realizada pelo Centro das Mulheres do Cabo (CMC) ofereceu alguns elementos para entender o fenômeno da evasão escolar na rede pública de ensino no Litoral Sul de Pernambuco. Intitulada “Diagnóstico Participativo sobre a Evasão Escolar das Meninas e Jovens Mulheres do Cabo de Santo Agostinho (PE)”, o estudo, que contou com apoio do Fundo Malala, traça o perfil das adolescentes e jovens mulheres fora da escola. De acordo com o levantamento, a gravidez precoce aparece entre as principais causas de abandono escolar. Outro dado mostrou que, das 96 meninas entrevistadas, 14,6% tiveram de trabalhar para gerar renda para suas próprias subsistência e de seus familiares.
Em muitos casos, é o ambiente escolar um dos espaços que mais reproduzem o pensamento opressor patriarcal por meio de práticas misóginas, racistas e lgbtfóbicas. É o que observa a educadora e ativista Odailta Alves. Com 27 anos em escolas das redes pública e privada, ela conhece muitas histórias de estudantes que precisaram interromper os estudos por motivos que são comuns à maioria das meninas que estão fora da sala de aula no Brasil.
“Vejo muitas meninas não retornando para a escola porque estão tomando conta das irmãs caçulas. Lamentavelmente, a mãe é a única pessoa que garante o sustento da família. Essa mãe, muitas vezes, vai cuidar do filho da branquitude e os seus e as suas ficam em casa. A escola acaba não sendo esse espaço que vai conseguir realmente garantir a permanência dessa menina”, comenta. Odailta observa que, diferente do que acontece entre jovens da classe média, que, mesmo engravidando precocemente, contam com mais apoio, as meninas pobres não conseguem voltar para a escola. “Muitas vezes a responsabilidade do filho é colocada apenas nas costas dela, que vai achar que a vida acabou. Em uma família de classe média, todo suporte é dado e a jovem continua sua vida. Mas, na realidade da favela, a logística é outra. Muitas vezes não tem nem quem fique com essa criança”.
Com a experiência de quem já atuou na Secretaria de Educação do Estado promovendo formações antirracista para professores, Odailta sabe bem a importância da escola na construção de uma sociedade mais igualitária. Por possuir um caráter formativo e normativo, a escola é o lugar propício para que meninos e meninas aprendam sobre respeito às diferenças e igualdade de gênero. Quando integrou o corpo docente da escola Arquiteto Alexandre Muniz, da rede municipal do Recife, Odailta foi uma importante parceira do projeto “Na trilha da Educação. Gênero e políticas públicas para meninas”, desenvolvido pelo Centro Dom Helder Camara (Cendhec) e apoiado pelo Fundo Malala. A iniciativa tem por objetivo colaborar no enfrentamento às desigualdades de gênero nas escolas dos municípios de Recife, Camaragibe e Igarassu.
“Muitas vezes, a escola acaba servindo de ferramenta para fortalecer e reproduzir as opressões. Não é atoa que a imagem da mulher é reproduzida historicamente sempre da mesma forma, dentro de um processo de invisibilidade ou dentro de um processo de domesticação. Outras narrativas não são colocadas dentro desse espaço. Eu questiono muito se é interesse dessa escola construir uma sociedade não sexista, não racista, não lgbtfóbica, Uma coisa é teorizar. Outra coisa é realmente o que se pratica. É dada formação? Quando não se pratica essa educação para os direitos humanos tem alguma consequência? Será que é prioridade respeitar as identidades, construir uma sociedade não misógina?”, questiona Odailta.
Uma Educação Não Sexista orienta-se pelo que dispõe a Resolução 34/180 da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), de 18 de dezembro de 1979, a qual se coloca a favor das “mesmas condições de orientação profissional, de acesso aos estudos e de obtenção de diplomas nos estabelecimentos de ensino de todas as categorias”. A Resolução propõe também a “eliminação de qualquer concepção estereotipada dos papéis masculino e feminino em todos os níveis”.
Vozes que se levantaram contra o sexismo
A educação ainda é um direito a ser conquistado por meninas de diversos países do mundo. Há 65 milhões delas fora da escola. Pelo menos 17 milhões nunca mais devem voltar à sala de aula, segundo estimativa da Unesco (Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura). A situação é alarmante em países como Nigéria (5,5 milhões), Paquistão (mais de três milhões) e Etiópia (mais de um milhão).
Ao longo da história, muitas vozes se levantaram contra a misoginia e o sexismo. Meninas e mulheres que questionaram o conservadorismo vigente em seus países e provocaram importantes reflexões na sociedade. No Brasil, a professora, jornalista, ativista pelo amplo direito à educação e da valorização da cultura negra, além de primeira mulher negra eleita no Brasil como deputada estadual, Antonieta de Barros carrega uma história de pioneirismo. Nascida em Florianópolis em 1901, ela lutou contra o machismo e o racismo predominantes em seu estado por meio da educação. Antonieta cursou a Escola Normal Catarinense, e após a formatura, criou um curso para alfabetizar a população pobre, em 1922. O curso, batizado com o nome dela, era ministrado em sua própria casa, e ela se dedicou a ele durante toda a vida.
No Paquistão, o casamento ainda é o destino de milhares de meninas. Por tentar inverter essa lógica, aos 14 anos, Malala tornou-se referência internacional na luta pela educação feminina após sofrer um atentado. Em 2012, no ônibus, saindo da escola, foi baleada na cabeça por talibãs, grupo radical contrário à educação das mulheres. Malala precisou sair do país com sua família e passou a estudar em uma escola na cidade de Birmingham, na Inglaterra, onde continuou o ativismo em defesa da educação de meninas ao criar, juntamente com seu pai, o Fundo Malala, instituição que apoia oito países no mundo, entre eles o Brasil, por uma educação de qualidade para meninas. É a mais jovem ganhadora do Nobel da Paz. Em 2020 formou-se em filosofia, política e economia pela Universidade de Oxford. Incansável na luta em defesa de meninas e mulheres, Malala alerta: “com mais de 130 milhões de meninas fora da escola hoje, há mais trabalho a ser feito”.
Conterrânea de Malala, em 2002, aos 16 anos, Gulalai Ismail, ao lado de sua irmã, fundou a Aware Girls, organização que promove acesso igualitário à educação, ao trabalho, à saúde e a outros serviços públicos no Paquistão. A ONG também atua na prevenção contra o vírus HIV e mobiliza a população paquistanesa para ajudar a colocar mais garotas na escola. Para ela, o trabalho de garantir acesso à Educação para meninas envolve todas as parcelas da soeciedade. “Se nós queremos trabalhar com uma garota, temos que trabalhar com toda a família”, diz Ismail.
No continente africano, a cantora Angelique Kidjo, nascida no Benin em 1960, se notabilizou por seu trabalho humanitário em prol das meninas africanas. Embaixadora da Boa Vontade do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, na sigla em inglês) da África Ocidental, Kidjo é uma das líderes da Fundação Batonga, que capacita mulheres e meninas na África por meio do ensino médio e superior. A fundação trabalha para melhorar a infraestrutura escolar, aumentar o número de matrículas, concede bolsas de estudo e fornece apoios e microcréditos para famílias de bolsistas.