Notícias

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”

| 3 de dezembro de 2021
A pedagoga do Cendhec Paula Ferreira (à esquerda) e a presidenta do Conselho Municipal de Educação do Recife, Ana Paula Tavares (centro) durante a formação “Interseccionalidade e Educação Pública. Classe, Raça e Gênero por uma escola transformadora”.

Uma escola transformadora não nasce sozinha. É preciso esforço coletivo dos agentes que atuam na rede de educação. Pais, alunos, professores e gestores precisam caminhar juntos (as). Os desafios deste processo foram abordados ao longo da formação “Interseccionalidade e Educação Pública. Classe, Raça e Gênero por uma escola transformadora”, realizada no último dia 30 pelo Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec) em parceria com o Conselho Municipal de Educação do Recife (CME/Recife) com apoio do Fundo Malala. As pedagogas Paula Ferreira e Benilda Brito foram as convidadas para a condução do encontro que contou com as participações de profissionais das redes de Camaragibe, Igarassu e Recife.

A formação, apresentada pela presidenta do CME/Recife, Ana Paula Tavares, aconteceu de maneira mista, presencial, no Centro de Formação Paulo Freire, no bairro da Madalena, Recife, e virtual, em parceria com Centro de Cultura Luiz Freire. Os educadoras (es) foram provocadas (os) a pensar sobre suas práticas pedagógicas a partir do recorte de raça. O mote foi escolhido em alusão ao Dia da Consciência Negra, mas todas as falas enfatizaram a importância de que o tema faça parte do cotidiano escolar ao longo de todo o ano letivo. Um ponto que foi levantado pela professora, mulher negra e de axé, Maria Cristina do Nascimento, que, desde 2013, vem discutindo as questões raciais na rede de educação.

Além dos conselheiros, o encontro contou com representantes do Centro de Mulheres do Cabo e das cidades do Cabo de Santo Agostinho e Paulista. Integrante do Cendhec e coordenadora do projeto “Na trilha da educação. Gênero e Politica Pública para Meninas”, Alcione Ferreira também esteve presente e aproveitou a oportunidade para falar um pouco sobre as ações desenvolvidas pela instituição, em especial relacionadas com Direito à Cidade e Direito da Criança e Adolescente. Na oportunidade, ela também comentou sobre a parceria com o Fundo Malala, que apoia o projeto com foco na melhoria de vida das meninas.

A pedagoga do Cendhec Paula Ferreira, ativista pela Educação do Fundo e integrante do Comitê PE da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, aproveitou o gancho da fala de Alcione para dar mais detalhes sobre o projeto no qual também atua como uma das representantes. Ela demarcou a importância do debate sobre o racismo nas escolas porque ele impacta diretamente a vida de meninas negras. Paula explicou que o principal objetivo do projeto “Na trilha da educação…” é incidir nas politicas públicas por uma educação antirracista e não sexista, um trabalho que exige a articulação de conselhos, secretarias de educação, legislativo, sociedade civil como um todo.

Para a pedadoga, a rede deve enfrentar os problemas coletivamente e colaborar com o enfrentamento às desigualdades de gênero dentro das escolas. Ela também chamou a atenção para o contexto da pandemia, que vitimou ainda mais meninas e mulheres. “Todo mundo que é pai, mãe, professor ou professora sabe do desafio que tem sido acompanhar seus filhos e estudante nesse contexto porque a saúde mental das crianças e jovens foi muito impactada. Nós, educadores e educadoras, também vivemos isso e, enquanto mulheres negras, mais ainda”, pontuou.

Para a ativista, o contexto de violências que marca a vida das mulheres afeta no desenvolvimento educacional e profissional. Ela apresentou pesquisas e dados que comprovam como fatores como abuso sexual e violência doméstica estão diretamente ligados à evasão escolar. “A escola precisa ser um espaço que acolhe. E não pode reproduzir as mesmas violências, A desigualdade de gênero é um problema histórico. Não pode ser uma questão enfrentada de forma individual”, defendeu.

Antes de encerrar sua explanação para os profissionais da educação, Paula Ferreira apresentou o documentário “Marcas de uma vida”. O vídeo, produzido e roteirizado pela própria pedagoga, conta a história da feirante Patrícia da Silva, moradora da Bomba do Hemetério. Ela precisou parar de estudar ainda na adolescência e relata o quanto a educação fez falta na sua trajetória de vida.

Benilda Brito convidou (as) os profissionais que atuam na área de Educação a pensarem sobre suas trajetórias no ensino

A história de Patrícia, que um dia sonhou ser médica, resume o perfil da maioria das mulheres negras do Brasil, observou Benilda Brito. “Se a gente não ganhou na loteria, se a gente não tem família rica nem herança, a única possibilidade de ascensão social que uma menina preta tem é a escola”, pontuou. Mestra em Gestão Social pela UFBA, fundadora do Odara Instituto da Mulher Negra, Ativista pela Educação do Fundo Malala, Benilda iniciou sua fala saudando seus orixás e lembrando que discutir uma escola antirracista é também tocar no tema da intolerância religiosa, que também é responsável por afastar estudantes e professoras (es) do âmbito escolar.  

“Evasão é quando se tem escolha. O sistema exclui quando não garante merenda, água , computador, escuta, afeto, identidade e diversidade. A gente precisa ensaiar o nosso repertório fortalecer as nossas narrativas para que possamos exigir o direito à educação. Isso não pode sair do nosso radar”, defendeu. A ativista revisitou alguns casos de racismo que aconteceram ao redor do mundo para contextualizar sua apresentação e como forma de sensibilizar ainda mais os participantes sobre a urgência do tema dentro das escolas.

Benilda também revelou números sobre o contexto de adversidade que tem aprofundado as desigualdades sociais no Brasil desde o início da pandemia e como os estudantes têm sido impactados pelo processo de crise sanitária mundial. Um dado importante apresentado por ela dá conta de que apenas 11,7% dos estudantes que fizeram o ENEM 2021 são jovens negros. Um quadro que prevê um futuro de desemprego e insegurança alimentar para essa parcela da sociedade, que vai continuar assumindo os piores postos de trabalho. “Lutar contra o racismo é uma questão de todos que acreditam nos Direitos Humanos”, declarou ela ressaltando ainda que o trabalho de combater o racismo é responsabilidade de todo o corpo que compõe uma escola: pais e mães, professores (as), gestores (as), alunos (as).

“Eu guardo aquilo que ouço”. Relembrando um provérbio africano, Benilda convidou os participantes da formação a refletirem verdadeiramente sobre suas atuações no âmbito escolar. “Que nossas palavras e reflexões não fiquem só no ouvido, mas que acessem o campo da escuta porque quando escutamos, guardamos e mudamos de posição”. Antes de concluir sua apresentação, Benilda lançou mão de outro provérbio afriacano que relembra a importância de ações em redes para garantir uma educação antirracista: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”.

Para assistir a formação na íntegra, acesse o vídeo completo disponível do canal do Cendhec:

Share This