Indígena do grupo étnico Warao, da Venezuela, Yurkelini Marin, 33, é migrante no Brasil e desde que chegou no país, em 2018, sente diariamente as marcas da discriminação. Mãe solo, Yurkelini migrou com os dois filhos, de 4 meses e 3 anos, acompanhada da mãe e de irmãos. Em poucos anos no Brasil, dentre as dificuldades enfrentadas desde o início do deslocamento, lidou com a dor de perder a mãe e o filho mais velho para o câncer.
Yurkelini está entre os 7 milhões de venezuelanos que fugiram da crise em seu país de origem e buscaram rotas de sobrevivência. Desde 2014, a Venezuela sofre com sanções econômicas aplicadas pelos Estados Unidos e aliados. Segundo relatório do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG), entre 2014 e 2017, os embargos geraram prejuízo estimado em cerca de 350 bilhões de dólares. Além disso, o país enfrenta uma grave crise econômica por conta da baixa do preço do petróleo. Estima-se que 51,9% da população do país vive na pobreza segundo Pesquisa Nacional de Condições de Vida (Encovi), de 2023, publicada pelo Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade Católica Andrés Bello (UCAB), da Venezuela.
A tentativa de desviar do desemprego e das inseguranças alimentar e de moradia, foram frustradas no novo destino. No Brasil, Yurkelini passou por Boa Vista, Manaus, Curitiba, Brasília e está, há seis meses, no Recife. A incerteza esteve presente na maior parte dos dias e ganhou forças quando, sem alternativas, esteve nas ruas de Manaus, no Amazonas, pedindo por emprego e ajuda financeira.
Passou por abrigos desestruturados e a falta de auxílio humanitário, a busca por melhoria para si e para o filho Santiago e a promessa de trabalho, foram decisivos para cada mudança de cidade. Veio para Recife com uma promessa de emprego que não foi cumprida, e ainda está desempregada. Vive em Nova Morada com o filho, a irmã, o cunhado e os sete sobrinhos.
A resistência
Alvo de discriminações, Marin lembra que já foi vítima de episódios de discriminação através de violência física e moral, mas luta por mudanças. “É preciso ter liberdade, direito de dirigir as palavras, o direito à moradia, […] de participar, ter direitos para falar, direito para sair, decidir”, defende. Ela afirma, sem titubear, que das cidades que passou no Brasil, foi em Recife que sentiu as marcas mais fortes do machismo.
O posicionamento forte e a consciência da importância da luta pela defesa de direitos é uma característica marcante em Marin. O povo Warao é composto por famílias matrilineares e a estrutura organizacional gira em torno da figura do Aidamo. Ela lembra que já esteve nessa posição em uma comunidade em Delta Amacuro, estado da Venezuela. No Brasil, esteve num papel semelhante quando foi líder comunitária em uma de suas estadias, em Roraima. “Cobrei por melhorias para indígenas e não indígenas, venezuelanos e brasileiros”, a mulher esteve a frente na defesa de crianças, jovens e mulheres, denunciando violações, cobrando por direitos para a comunidade e auxiliando na organização local.
A língua foi uma das barreiras que encontrou no Brasil, amenizada por um curso de língua portuguesa que lhe auxiliou na melhoria da comunicação. Marin acredita na força da educação. Era concluinte do curso de Educação Integral, numa universidade em Tucupita, capital de Delta Amacuro, onde vivia antes de vir para o país. Em Roraima, foi professora voluntária.
A força que move Yurkelini é o desejo de um futuro digno e feliz para o filho mais novo, Santiago, que hoje tem 5 anos. Segundo ela, cada mudança de cidade “É, novamente, recomeçar a vida”.
“Mami, quien soy yo?”
Mesmo aos 5 anos, o sentimento de não pertencimento afeta a construção de identidade de Santiago, que questiona: “Mami, quien soy yo?”. Segundo Marin, a confusão do filho abrange identidade étnica e nacionalidade, ele costuma perguntar se é indígena ou negro, venezuelano ou brasileiro. Essa é uma das marcas do distanciamento de suas raízes e da falta de políticas públicas de integração efetiva na cidade, essa é uma dentre tantas negligências de diferentes esferas do poder público, com a população Warao.
Yurkelini Marin é do povo da água ou povo das canoas, significado de “Warao” para os indígenas da etnia. Nascida e crescida nas palafitas de madeira de açaí, às margens do rio Orinoco, em Nava Sanuca, viveu com os avós e lembra com saudade do lugar de origem. A pesca, a agricultura e a colheita de alimentos está dentre os principais meios de vida dessa etnia. A alimentação composta por frutas, alimentos da terra e peixes é uma das memórias mais fortes de Marin. Conheceu a mãe aos 15 anos, com quem passou a morar no centro da cidade, e conta que com o deslocamento já sentiu as diferenças na alimentação.
É inevitável não identificar o abismo entre a memória que a leva para a gastronomia Warao e as privações alimentares que enfrentou em solo brasileiro. O artesanato de materiais feitos a partir do buriti, parte da tradição do povo Warao, também é uma prática que manteve no Brasil como complemento de renda, mas que foi interrompida pela impossibilidade de comprar materiais para reposição.
Hoje, da janela de casa, em Nova Morada, assiste uma paisagem recifense endurecida, estática. Apesar do cenário que nada se assemelha com sua infância e a memória que tem em sua comunidade, através do artesanato, do canto e da dança, a mulher mantém viva a conexão com sua cultura. Cultivar o elo com os costumes inerentes à sua tradição é demarcar sua identidade e de alguma maneira, ainda que limitada e distante do ideal, estar mais perto de suas raízes.
“Quando falamos da nossa cultura, significa que não podemos perde-la, nossos costumes, nossas danças […] Não podemos perder isso. Quando eu canto, as vezes choro, rio, me vem tudo em torno de mim, meus problemas… então começo a cantar, dançar. É minha cultura, não perco isso. Não podemos perder”.