Matéria: Luana Farias Fotos: Marlon Diego/ Arte: Alcione Ferreira
“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. O provérbio africano é reflexo da organização de comunidades dedicadas ao coletivo enquanto alicerce fundante. Cuidar é coletivo.
Apesar do ensinamento ancestral estar refletido na estrutura de comunidades tradicionais brasileiras, como as quilombolas e indígenas, a solidão na maternagem de milhões de mães, em todo o Brasil, é uma realidade agravante e próxima. Ser a responsável integral pelo desenvolvimento pleno de vidas é um trabalho árduo e frequentemente invisibilizado. Jovens e mulheres são expostas ao acúmulo de funções e ao distanciamento de áreas essenciais da própria vida, como o lazer, a manutenção de relações pessoais e o desenvolvimento profissional.
Maternagem, educação e trabalho
“Minha única rede de apoio sempre foi minha mãe”.
O dia de Evellin, 21, já começa nas primeiras horas da manhã num ritmo acelerado. Desde que se tornou mãe, todos os dias a jovem sai cedo de casa para trabalhar, motivada pela busca de um presente e um futuro social e economicamente mais seguros para o filho, Heitor, 5.
Mãe solo, desde o nascimento de Heitor, Evellin França tem o apoio da mãe nos cuidados com o filho. Foi nesse período que a jovem se viu na necessidade de conciliar maternidade, trabalho e estudo – a tão injusta e cruel jornada tripla.
Na época como estudante do 2° ano do ensino médio, aos 16 anos, ela relembra que manter o foco na escola foi um dos maiores desafios. “Também tive dificuldade de me adaptar a uma rotina tão corrida”, revela.
Apesar das barreiras mais densas que encarou para seguir com os estudos, Evellin conseguiu concluir o ensino médio. Com a autorização da coordenação da instituição de ensino, Heitor a acompanhou nas aulas e foi a verdadeira motivação para a conclusão da etapa tão importante para a jovem.
Para as mulheres, o principal motivo da evasão escolar é a necessidade de trabalhar (25,5%), seguido pela gravidez (23,1%), conforme aponta o módulo anual sobre Educação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do IBGE, com dados de 2023.
Evellin França é moradora da ZEIS Vila Independência, localizada em Nova Descoberta, e concluiu o curso de Formação Política oferecido pela equipe do Programa Direito à Cidade, do Cendhec, em 2022. Assistente Social do Centro e facilitadora da Formação, Lorena Melo reconhece: “O que temos observado ao longo dos trabalhos e atividades com as juventudes é que as meninas e mulheres que são mães têm saído com uma compreensão mais ampliada e crítica da realidade em que vivem”. Conforme explica, hoje as jovens identificam as barreiras e as raízes para os desafios que enfrentam, “assim como estão com mais desejo de construir possibilidades na luta e na vivência cotidiana para condições cada vez mais dignas de vida e para os seus”.
Barreiras
Enquanto homens se isentam da paternidade, o número de mães que cuidam de seus filhos e filhas sozinhas chega aos 11,3 milhões, segundo pesquisa realizada através do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), com dados do Painel Nacional de Amostra por Domicílio/PNAD Contínua 2022. 11,3 milhões de mães solos. 11,3 milhões de mulheres expostas ao silenciamento angustiante diante do abandono e da sobrecarga deixada.
Os dados são o retrato infeliz da densa e complexa raiz patriarcal e conservadora do país, consolidada por camadas de expressão do racismo, da misoginia e do conservadorismo religioso.
Os estudos ainda explicitam que 15% dos lares brasileiros são chefiados por mães solos e 72,4% não possuem rede de apoio. Os números são uma expressão da desigualdade, seja ela de gênero ou raça. A pesquisa mostra que 90% das mulheres que são mães solos são negras.
Segundo Lorena Melo, os desafios da maternidade solo se agravam para as jovens que foram mães na adolescência. A assistente social avalia que o acesso e permanência à educação tem forte impacto na vida das meninas e mulheres. E argumenta: “A ausência de planos, programas ou projetos dentro da Política de Educação que possam garantir a manutenção das jovens no ensino básico (fundamental e médio), técnico ou superior após a gestação conduz um efeito dominó nas diversas áreas da vida. Em contexto de vulnerabilidade socioeconômica, as possibilidades de escolha por condições dignas de vida (tanto para elas quanto para a família que se inicia) são cerceadas”.
Dentre os desafios pontuados pela assistente social, está o racismo, fator indissociável a renda. O racismo tem impactos subjetivos e materiais no âmbito das relações interpessoais, “principalmente diante o contexto brasileiro de relações racializadas e das disparidades no âmbito do trabalho entre as mulheres negras”. A remuneração média das mulheres negras no Brasil é de R$ 1.948. Esse valor corresponde apenas a 48% do que homens brancos recebem em média, 62% do que as mulheres brancas ganham e 80% do que os homens negros recebem, de acordo com estudo do Ibre/FGV. “É notório que este abismo salarial é composto por condições precárias de trabalho. Nesse sentido, faz-se necessário muitos esforços para mudar a base da pirâmide social”, aponta.
De acordo com a Pesquisa do PNAD Contínua Outras formas de trabalho 2022, divulgado em 2023 , 34,6% das mães solos negras, com filhos de até cinco anos, estão fora do mercado de trabalho. Desse modo, as inseguranças socioeconômicas são o lugar mais comum entre as mulheres sem trabalho remunerado.
Dentre as barreiras a serem enfrentadas pelas jovens e mulheres mães, está o conservadorismo fundado no patriarcado que objetifica o corpo que gesta. Nos últimos anos agravaram-se o esvaziamento e ataque, com viés moral e criminalizador, a temáticas importantes sobre os direitos reprodutivos, com destaque para a educação sexual nas escolas e aborto. Sendo utilizadas como instrumento de poder e dominação.
“Tais pautas carecem de discussões comprometidas no ponto de vista ético, político e social com os direitos reprodutivos, sobretudo de adolescentes, que junto com as crianças, de acordo com a pesquisa realizada pela UNICEF e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, alcançam percentuais catastróficos de 81%, nos anos de 2017 a 2020, das vítimas de 0 a 14 anos que sofreram estupros ou estupro de vulnerável“.
É fundamental reconhecer o Estado na compreensão de rede de apoio. Com o Estado assumindo o seu papel, designando absoluta prioridade, conforme o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/93), condições que assegurem a dignidade das crianças e adolescentes. “Assim, a rede fica fortalecida, junto a outros atores/atrizes os quais podem ser àqueles/as que a adolescente ou jovem sinta confiança”, explica Lorena.
A ausência parental, a desigualdade de gênero e de raça são medidas injustas que sobrecarregam as mães brasileiras com o acúmulo de responsabilidades.
Uma rede de apoio fortalecida estabelece segurança para que a adolecente ou jovem que se tornou mãe possa ter autonomia na construção de sua história de vida.
Lorena Melo, Assistente social do Cendhec.