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Conselhos Tutelares no alvo do conservadorismo religioso: uma ameaça ao cumprimento do ECA

| 12 de outubro de 2023
Arte e Reportagem: Alcione Ferreira

O aparelhamento de alas conservadoras e religiosas neopentecostais nas eleições para os conselhos tutelares no Brasil é um fenômeno que merece uma análise crítica, dado o seu impacto nas políticas de proteção à infância e à adolescência. Essa tendência, evidenciada principalmente nas duas últimas eleições (2019 e 2023), representa um desvio significativo do propósito original desses órgãos, que é garantir a proteção das crianças e adolescentes, independente de sua raça/etnia, classe social, gênero e crença religiosa, e promover os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Na última data do mês de setembro, num sábado 30, um dia antes daquela que ficou conhecida como “A Eleição do Ano”, votação para escolha de representantes dos conselhos tutelares de todo o Brasil, o pastor Silas Malafaia publicou um vídeo em seu canal do youtube com o seguinte discurso proferido aos berros: “Eu estou vendo nesses dias, quieto assistindo uma campanha bandida, cretina, inescrupulosa contra pastores, evangélicos e cristãos em geral na questão da eleição para membros dos conselhos tutelares, sabe… uma campanha promovida por ‘esquerdopatas’, ‘ativistas gays’, gente que nos odeia, ‘artista vagabundo’ que debocha da fé cristã… jornalista… é uma piada”   “Quem tem moral para falar sobre direitos humanos somos nós, não foi a esquerda ou os ativistas gays que foi promotor de direitos humanos na sociedade ocidental, foi a reforma protestante” … “Eu quero convocar o povo evangélico, nós temos o direito de votar em gente que tenha a nossa base de convicção ideológica. Não vamos deixar pra lá!”. O discurso-convocação do pastor Malafaia, repleto de ódio e ofensas, é um exemplo prático do aparelhamento das alas conservadoras e fundamentalistas religiosas na ocupação de espaços importantes da promoção de direitos humanos com intuito de distorcer o papel dessas instâncias para tornar-se extensão doutrinária de cunho político religioso neopentencostal.

Um exemplo prático desse aparelhamento está na disseminação das próprias campanhas, uma enxurrada de santinhos distribuídos via redes sociais com nomes de candidaturas antecedidas pela titulação de “pastor” ou “irmã/irmão fulana/o”, indicações feitas durante cultos evangélicos, além da prática ilegal de distribuição de “colas eleitorais” com nomes e números de candidatas/os ligadas/os a igrejas, como aconteceu num colégio eleitoral em Tremembé (SP), onde obreiras/os da Igreja Universal do Reino de Deus fizeram boca de urna para influenciar eleitoras/es. Mas por que a mira dos conservadores está tão focada nos conselhos tutelares? Esta é uma porta de entrada estratégica para se chegar em outras instâncias de poder decisivas e há muito tempo vem sendo cooptada por essas forças que tentam influenciar, através do acesso direto, as famílias e infâncias, um dos objetivos é derrubar pautas relacionadas a temas como diversidades de gênero, orientação sexual e aborto.

Nas eleições para conselhos tutelares das duas maiores cidades do Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo, o conservadorismo se fez presente de maneira marcante nesta última eleição. A disputa por essas vagas, tradicionalmente dedicadas à proteção dos direitos das crianças e adolescentes, revelou uma crescente influência da extrema direita, com líderes evangélicos e apoiadores do Bolsonarismo conseguindo eleger um número significativo de representantes. É aí que entra influências como a de Silas Malafaia: no Rio de Janeiro, o pastor, aliado do ex-presidente Bolsonaro e líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, se destacou, conseguindo emplacar sete titulares e dois suplentes em diferentes conselhos tutelares. Essa mobilização contou com o apoio de líderes religiosos, que convocaram seus fiéis a votarem em candidatos indicados por eles. Segundo um levantamento do jornal O Globo, dos 95 titulares eleitos no Rio e dos 260 em São Paulo, 14% deles defendem pautas conservadoras associadas à base evangélica. Em contrapartida, os ligados a pautas progressistas representam apenas 4,7% dos escolhidos.

Sabemos que muitas das pautas conservadoras, com base religiosa, vão de encontro ao que está disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente e também na Constituição Federal. Certas violações são objeto do não cuidado adequado. Temos um exemplo muito concreto no quanto que dogmas religiosos podem estar interferindo na proteção de crianças, como o que aconteceu em 2020 quando uma menina de onze anos precisou vim fazer um aborto em Recife por conta de uma recusa de outros médicos em realizar  esse procedimento decorrente de um estupro . Vimos aqui uma movimentação muito grande de representações religiosas contrárias a que essa menina exercesse o direito legal de realizar a interrupção da gravidez que foi provocada por uma violência sexual. É preocupante essa mistura e não é só uma dimensão ética. É uma dimensão ética e legal. O conselho tutelar tem uma atribuição muito específica que está elencado nos artigos do ECA. Combinar a atuação do conselho tutelar com ação dogmática religiosa é incompatível”. Explica Juliana Acioly, coordenadora de projeto do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social -Cendhec.

Conselho Tutelar não é lugar para púlpito religioso

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um marco legal que visa a proteção integral de crianças e adolescentes no Brasil. Foi criado em 1990, substituindo o antigo Código de Menores, que não considerava de maneira abrangente as necessidades e direitos das pessoas com idade inferior a 18 anos. A elaboração do ECA foi um grande avanço na legislação brasileira, representando um compromisso do Estado em garantir os direitos e o bem-estar das crianças e adolescentes. O ECA tem como objetivo principal a promoção, proteção e garantia dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Ele estabelece diretrizes para diversas áreas, incluindo educação, saúde, assistência social, cultura, lazer, entre outras. Também proíbe o trabalho infantil e a exploração sexual, bem como estabelece procedimentos específicos para a adoção, medidas socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei.

Nesse contexto, o Conselho Tutelar desempenha um papel fundamental na efetivação das leis previstas no ECA. São órgãos autônomos, compostos por membros eleitos pela comunidade, que atuam na proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes em nível municipal. Eles são responsáveis por receber denúncias de violações desses direitos, realizar investigações, aplicar medidas protetivas, aconselhar as famílias e promover a conscientização sobre os direitos da infância e da juventude. O Conselho Tutelar é a primeira instância de defesa e promoção dos direitos infantojuvenis, e atua em estreita colaboração com outras instituições e órgãos governamentais para garantir o cumprimento do ECA. Em resumo, o ECA e o Conselho Tutelar trabalham em conjunto para assegurar que as crianças e os adolescentes tenham um ambiente seguro e propício ao seu desenvolvimento integral.

O conselho tutelar tem uma atribuição muito específica que está elencado nos artigos do ECA. Combinar a atuação do conselho tutelar com ação dogmática religiosa é incompatível.”
Juliana Acioly – Coordenadora de projeto do Cendhec

É perceptível que as eleições para conselhos tutelares não receberam a atenção devida da sociedade em comparação com outras eleições durante anos, o que fez dessa lacuna uma estratégia poderosa para políticos e religiosos conservadores ocuparem este espaço. Esse envolvimento de grupos religiosos nas eleições para os conselhos é uma extensão da influência que têm exercido nas políticas nacionais. A atuação alinhada a bancadas evangélicas, que também promovem agendas conservadoras, demonstra a interconexão entre essas esferas e como as questões religiosas podem permear a política pública.

Um exemplo disso é a ênfase dada ao que as alas mais conservadoras do país chamam de “ideologia de gênero”, que é frequentemente usada como um mote de campanha por candidatas/os ligadas/os a grupos religiosos. Isso representa um risco, pois evidencia uma estratégia de minar a inclusão e o respeito aos direitos de pessoas LGBTQIA+ e outras populações historicamente vulnerabilizadas. Essa abordagem vai contra os princípios de igualdade e não discriminação já estabelecidos no ECA. “A gente precisa lembrar que a Constituição Federal  deixa muito claro que o estado brasileiro é um estado laico. Então não é possível haver supressão ou ameaças a direitos baseados em dogmas religiosos ou coisas desse tipo”, alerta Juliana Acioly.

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conanda, estabeleceu em 2022, a resolução 231, na qual destaca no artigo 8 do capítulo II possíveis abusos de ordem econômica e/ou religiosa dentro do processo de escolha dos membros dos Conselhos Tutelares no Brasil: “A relação de condutas ilícitas e vedadas seguirá o disposto na legislação local com a aplicação de sanções de modo a evitar o abuso do poder político, econômico, religioso, institucional e dos meios de comunicação, dentre outros.” A resolução completa pode ser conferida neste link.

A partir de denúncia do Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH, através da Associação de Ex-Conselheiras e Conselheiros da Infância, alertando para a possibilidade de interferência de abuso de poder religioso no processo eleitoral de 2023, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro entrou com solicitação ao Ministério Público Federal que por sua vez, cobrou ao Conanda que informasse quais medidas foram adotadas para prevenção de abuso do poder religioso nas eleições para conselheiros tutelares.

Os principais compromissos do Conselho Tutelar, conforme o ECA

1. Atendimento e escuta:

O Conselho Tutelar deve receber denúncias, reclamações e pedidos de ajuda, prestando atendimento e escutando crianças e adolescentes que estejam em situação de risco ou que tenham seus direitos violados.

2. Aplicação de medidas de proteção:

O Conselho Tutelar tem o poder de aplicar medidas de proteção quando necessário, como encaminhamento para programas de assistência social, orientação aos pais ou responsáveis, ou, em casos mais graves, a requisição do acolhimento institucional.

3. Fiscalização e acompanhamento:

O órgão é responsável por fiscalizar instituições de acolhimento, como casas de acolhida, garantindo que estas estejam em conformidade com as normas legais e proporcionando um ambiente adequado para o desenvolvimento das crianças e adolescentes acolhidas/os.

4. Orientação e aconselhamento:

O Conselho Tutelar deve orientar pais, responsáveis e crianças/adolescentes, promovendo a resolução de conflitos familiares e oferecendo apoio psicossocial quando necessário.

5. Intervenção judicial:

Em situações graves, o Conselho Tutelar pode encaminhar o caso para o Poder Judiciário, solicitando medidas judiciais de proteção, como a destituição do poder familiar ou adoção.

6. Promoção de políticas públicas:

O Conselho Tutelar também desempenha um papel na promoção de políticas públicas relacionadas à infância e à adolescência, colaborando com órgãos governamentais na formulação e implementação de programas e ações.

7. Educação e conscientização:

Os conselheiros podem realizar ações de conscientização e educação junto à comunidade, escolas e outras instituições para difundir informações sobre os direitos das crianças e adolescentes e a importância de sua proteção.

8. Registro de casos:

O Conselho Tutelar é responsável por manter registros detalhados de todos os casos atendidos, garantindo a confidencialidade e a documentação necessária para o acompanhamento e avaliação das ações.

9. Plantão 24 horas:

O Conselho Tutelar deve manter um serviço de plantão 24 horas, garantindo atendimento imediato em casos de emergência que envolvam crianças e adolescentes em situação de risco.

Os Conselhos Tutelares devem ser compostos por representantes comprometidos com a aplicação efetiva do ECA, em vez de priorizar agendas religiosas e conservadoras. A presença dessas alas pode dificultar a abordagem adequada das questões de violência doméstica e sexual, por exemplo, uma vez que podem estar mais inclinadas a julgar e reprimir, em vez de adotar uma abordagem baseada nos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta. Em muitos casos de violações de direitos de crianças e adolescentes o perigo pode estar justamente dentro de ambientes domésticos, como apontou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com o estudo, houve um aumento significativo nos casos de maus-tratos a crianças e adolescentes em 2022. Foram registrados 22.527 casos, um acréscimo de 13,8% em relação ao ano anterior. A maioria dessas ocorrências acontece em ambiente doméstico, uma vez que a proporção dos estupros de vulnerável que ocorrem em casa é de 71,6%, entre crianças e adolescentes até 13 anos, os principais autores de estupros são familiares (64,4%) ou conhecidos da vítima (21,6%), evidenciando a necessidade urgente de proteger os direitos das crianças e adolescentes em suas próprias casas.

A importância de se ter representatividade de pautas inclusivas nos Conselhos Tutelares é evidente quando se considera que a infância e a adolescência são estágios decisivos para o desenvolvimento humano e social. A promoção dos direitos das crianças e adolescentes não deve estar sujeita a interpretações ideológicas que possam negar ou limitar esses direitos. Em vez disso, o enfoque deve ser na garantia de um ambiente seguro, saudável e inclusivo para essa população.

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