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Carolina e Marielle afrontaram o sistema racista e misógino do Brasil

| 27 de março de 2024

As histórias de Carolina Maria de Jesus e Marielle Franco se encontram nas linhas e entrelinhas da história de resistência contra o racismo institucionalizado no país. Em tempos distintos, o Brasill foi o mesmo para essas mulheres.

Matéria e arte: Luana Farias

104 anos separam o nascimento de Carolina Maria de Jesus e o assassinato de Marielle Franco, ambos no dia 14 de março. Dois anos as separaram de viver no mesmo tempo da história, mas ainda que em épocas e contextos distintos, o Brasil foi o mesmo para essas mulheres. Símbolos de subversão e forças de resistência contra o racismo, ambas fizeram da vida instrumento político. Cada uma a seu tempo, com suas próprias ferramentas, enfrentaram violências e plantaram sementes para a busca por caminhos mais justos, possíveis e dignos na periferia. 

Carolina teceu a memória de sua história

Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, em Sacramento, Minas Gerais. É onde está o maior acervo de seus manuscritos, contabilizando cerca de cinco mil páginas de contos, diários, poesias, peças de teatro, romances e outros escritos. Ao lado da família, com os pais e o avô, passou por várias cidades do interior de Minas Gerais em busca de melhores condições de vida.

A escritora nasceu 26 anos após o fim do regime escravocrata no Brasil, que perdurou mais de 300 anos e continuou com outros mecanismos. Naquele momento, as marcas da ferida mais profunda da história do país era ainda mais sensível. O crescimento numeroso das favelas, ocupadas majoritariamente por pessoas cujo acesso à moradia e à alimentação era uma incerteza cotidiana, foi o reflexo de séculos de crimes contra a vida da população negra, aliado ao processo de expulsão dessas pessoas dos centros urbanos. O regime mudava de face e formas de atuação, mas o Estado permanecia interessado no empobrecimento e escassez dessa parcela da sociedade.

“13 de Maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos…Nas prisões os negros eram os bodes expiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com desprezo.  […] Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. […] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”

Em seus relatos no livro “Quarto de despejo: Diário de uma favelada”, a autora escancarou a desigualdade e a dureza de vidas traçadas pela ausência de direitos básicos à existência humana com dignidade. Mãe solo de três filhos, naquele período Carolina precisou catar papel diariamente para garantir o alimento de cada dia da família.

Da favela de Canindé, em São Paulo, onde morou por dez anos, questionava as condições precarizadas da população aglomerada nas periferias da capital em contraposição à abundância vivida por quem estava no alto dos prédios que se levantavam em torno da comunidade. O abismo entre os lugares também era apontado pela diferença de tratamento com os ricos e os pobres. Canindé foi criada pela prefeitura de São Paulo, em 1948, após despejar famílias do centro da cidade, durante o processo de urbanização, e as transferiu para o terreno público às margens do rio Tietê. A região não era própria para habitação, não oferecia canalização de esgoto nem água potável e sofria com inundações.

A literatura foi sua ferramenta de resistência política. Carolina esteve em reportagens de jornais impressos, onde também publicou alguns de seus poemas e crônicas. Também apresentou poemas de sua autoria em encontro com  José Correia Leite, figura da imprensa e do ativismo negros. Nutriu contato e recebeu homenagens de organizações e clubes de ativismo negro como a Associação Cultural do Negro (ACN), o Club 220, e o Club Renascença, no Rio de Janeiro.

“Quarto de despejo” foi lançado em 1960, chegando a mais de 200 mil exemplares vendidos da primeira edição. Carolina falou sobre desigualdade de gênero e raça, além do desejo de mudança do cenário social e político do país, num período em que o sistema brasileiro atuava com mãos de silenciamento, perseguição e atentado contra a liberdade e a vida de quem ousava contrariar o regime imposto: a ditadura militar. Nesse período a escritora foi afastada da vida pública e dos debates políticos. “É próprio dos ditadores não gostar da verdade e dos negros”, afirmou.

“Ser mulher negra é resistir o tempo todo”

Em entrevista para o apresentador e ator Lázaro Ramos, exibida no Canal Brasil, a escritora Conceição Evaristo refletiu: “Eu quero ser digna e corajosa como Carolina foi”. Com inspiração na afirmação de Conceição, é pertinente adaptar a frase para: “Eu quero ser digna e corajosa como Carolina e Marielle foram”.

As histórias de Carolina e Marielle se encontram em narrativas de coragem. Ser mulher negra, mãe e periférica é uma experiência particularmente desafiadora no Brasil. Sem poder de escolha, o lugar de enfrentamento é conhecido e cotidiano para essas mulheres, entrelaçadas por uma luta contra o mesmo opositor: o Estado conservador e excludente que não abre mão do mecanismo de sustentação de seus genocídios.

“Ou essa sociedade muda a estrutura a partir de nós, e aí objetivamente uma sobe e puxa a outra… ou essa revolução será a partir das mulheres negras, ou ela não será!”

Marielle nasceu em 1979, período em que o Brasil ainda vivia o regime ditatorial, findado em 1985. Nascida e crescida no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, Marielle entrou para a militância aos 21 anos, após perder uma amida, vítima de bala perdida, durante confronto entre policiais e traficantes na Maré. Mulher negra, mãe, bissexual, defensora dos direitos humanos, da luta antirracista e feminista, com forte propriedade de causas, Marielle fez de sua vida, instrumento político.

Cientista social e vereadora no Rio de Janeiro, Marielle se intitulava “feminista, negra e cria da Maré”. Foi reafirmando sua identidade e raízes, com voz potente e articulada, que lançou luz sobre as vivências nas periferias do Rio de Janeiro e subverteu a ordem levando para a câmara pautas da comunidade LGBTQIAPN+, do direito à cidade, debates sobre a legalização do aborto seguro para mulheres vítimas de violência sexual. Sem meias palavras, Marielle posicionava-se firmemente mesmo num âmbito onde o conservadorismo impera.

O cenário político no Brasil vivia tensões da eleição presidencial do ano de 2018, marcada por discursos e posicionamentos de extrema direita, que ameaçavam constantemente o estado democrático de direito e defendiam o avanço da militarização nas comunidades. As marcas do fascismo se tornavam cada vez mais visíveis em falas de cooptação por representantes como o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Em seu último pronunciamento, em Sessão Plenária, no dia 08 de março de 2018, Marielle se posicionou:

“Nesse período, por exemplo, onde a intervenção federal se concretiza na intervenção militar, eu quero saber como ficam as mães e familiares das crianças revistadas. Como ficam as médicas que não podem trabalhar nos postos de saúde. Como ficam as mulheres que não têm acesso à cidade? Essas mulheres são muitas. São mulheres negras; mulheres lésbicas; mulheres trans; mulheres camponesas; mulheres que constroem essa cidade”.

Marielle Franco foi vítima de violência política, brutalmente assassinada no dia 14 de março de 2018, com o carro alvejado, vitimando também o motorista Anderson Gomes. No último domingo (24), uma operação organizada pela Polícia Federal, Procuradoria-Geral da República e Ministério Público do Rio de Janeiro prendeu os possíveis mandantes do crime: Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, Chiquinho Brazão, deputado federal do Rio de Janeiro e Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, responsável por atrapalhar as investigações. Além deles, foram presos no dia 14 de março de 2019, o sargento aposentado Ronnie Lessa, acusado como o autor dos disparos, e o ex-policial militar Élcio Queiroz, apontado como o motorista do carro em que os disparos foram dados.

Em nota oficial, o Comitê Justiça para Marielle e Anderson, articulação coordenada pelo Instituto Marielle Franco, pontua que apesar dos avanços das investigações, é preciso cobrar tanto a responsabilização dos envolvidos, quanto “a construção de um cenário de justiça que garanta as medidas de responsabilização dos autores, reparação aos familiares e medidas de não repetição, isto é, prevenção de outros casos de violência política de gênero e raça, garantindo que nenhuma outra mulher negra seja interrompida”.

Em menção à importância da luta política da vereadora e à violência que cruzou e interrompeu sua vida, o dia 14 de março foi instituído, em 2023, como o Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento à Violência Política de Gênero e Raça.

Os seis anos sem resposta para a pergunta que tanto ecoou, “Quem mandou matar Marielle, e por quê?”, e os esforços contrários para atrapalhar a solução do caso, é um exemplo de como o Estado brasileiro ainda falha com a população negra, periférica e feminina. Historicamente, esta parcela da sociedade é alvo de violações diárias e continua na mira das tentativas de apagamento e silenciamento.

Marielle e Carolina são espelhos históricos de coragem contra um Brasil que permanece atualizando, reformulando e inovando nas tentativas de apagamento de mulheres negras e população periférica. Representam uma população resistente, afrontosa e que busca por transformações. Na política ou na literatura, as vidas de Marielle e Carolina são vidas que contam. O legado de coragem foi plantado e nutrido por essas mulheres, e segue ecoando. 

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