Texto: Lenne Ferreira | Ilustração: Alcione Ferreira
A defesa de uma Educação de qualidade e que promova autonomia para a vida de meninas tem sido foco de atuação de organizações e ativistas pelo mundo todo. Dentro e fora das salas de aulas, há pessoas que dedicam suas trajetórias profissionais a militar por ações que movam estruturas e possibilitem mais igualdade social e de gênero. São homens e mulheres que propõem reflexões e atuam no sentido de promover transformações, uma vez que o ativismo pela Educação também ocorre para além dos muros da escola, mas sem se distanciar dela e das realidades que se desenham no ambiente educacional.
Nessa perspectiva, em 2013, foi criado o Fundo Malala, que carrega o nome de uma jovem paquistanesa que ficou conhecida mundialmente após ser baleada por desafiar os talibãs que impediam meninas de frequentar a escola. Para ampliar a luta de Malala, que recebeu o título Nobel da Paz com apenas 17 anos de idade, foi criado o Fundo, hoje, atuante em oito países: Afeganistão, Brasil, Etiópia, Índia, Líbano, Nigéria, Paquistão e Turquia. Em todo o país, são 11 educadores e educadoras que articulam ações de incidência política a partir de territórios socialmente vulneráveis ou provocando as autoridades públicas locais.
“O Fundo Malala tem orgulho de apoiar os projetos e aprender com a experiência de cada uma e cada um”, diz Gaya Butler, diretora do Programa de Incidência Política do Fundo Malala. “Estamos ansiosos para desafiar o status quo juntamente com esses parceiros e ajudar a impulsionar avanços”. Maíra Martins, representante do Fundo Malala no Brasil, também acredita na potência da Rede de Ativistas pela Educação para promover mudanças estruturais. “O Fundo Malala acredita que para transformar a realidade da educação é essencial investir em ativistas e suas organizações também a nível local para fortalecer a luta das meninas pelos seus direitos”, pontua.
Em Pernambuco, são quatro ativistas que têm como missão construir esforços coletivos pela educação escolar de qualidade com foco em meninas negras, indígenas e quilombolas. Um ativismo que se desenvolve a partir do diálogo constante com as atrizes e os atores do campo da Educação seja professoras (es), estudantes, gestões e poder público e entendendo a intersecccionalidade do tema. Conheça a seguir um pouco da trajetória de cada uma/um e acompanhe suas ações. Visibilizar o ativismo pela Educação é uma forma de contribuir com a ampliação de pautas importantes para promover melhorias estruturais na sociedade brasileira.
Nascida e criada na Bomba do Hemetério, Paula Ferreira possui uma trajetória de 18 anos marcada pelo ativismo por uma Educação pública de qualidade. Primeira pessoa da sua família a conquistar o curso superior, ela é graduada em Pedagogia e, desde 2019, ingressou no Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (CENDHEC), organização que defende e promove os Direitos Humanos , em especial os Direitos de Crianças e Adolescentes e o Direito à Cidade, além de mobilizar a sociedade civil para garantia da democracia e protagonismo de mulheres, juventudes e moradoras/es de assentamentos populacionais.
Atualmente, é também integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala e atua no projeto “Na Trilha da Educação. Gênero e políticas públicas para meninas”, que mobiliza três redes públicas de ensino da Região Metropolitana do Recife: Igarassu, Recife e Camaragibe. Por meio da incidência junto às instituições de ensino e das autoridades públicas, o projeto, que é desenvolvido pelo Cendhec em parceria com o Fundo Malala, visa sensibilizar e ajudar na construção de estratégias de combate às desigualdades de gênero nas escolas.
A trajetória de Paula no campo da educação se deu bem antes, quando nem ela mesma tinha consciência disso. Tudo começou a partir da atuação no grêmio livre Nelson Mandela da Escola Estadual Profº Mardonio de Andrade Lima Coelho, na Bomba do Hemetéreo, onde estudou no ensino médio. Nessa época, ela já lutava por direitos à educação, saúde, saneamento básico e moradia digna, o que foi ampliado quando se tornou educanda da ONG – Auçuba Comunicação e Educação, que usa a Comunicação e Educação como ferramentas para promover direitos de crianças, adolescentes e jovens. Foi a partir desse espaço que participou de algumas redes importantes, entre elas, a “Sou de Atitude”, coordenada pela ONG Cipó Comunicação Interativa e que tinha como objetivo estimular a participação política de crianças, adolescentes e jovens para monitorar políticas públicas na área da infância, adolescência e juventude.
Na Auçuba, Paula tornou- se coordenadora do projeto “Escola de Vídeo”. “Um marco importante na minha trajetória na organização foi ter assumido a coordenação desse projeto que sempre atuou em escolas públicas assim com outros, a exemplo, do Núcleo de Comunicação Comunitária – NCC, Cine Bomba Cultura e Comunidade e o projeto Comunicação e Educação. Também dividi a coordenação executiva do Auçuba como articuladora política e comunitária”, relembra Paula, que também é mãe de uma menina e um menino.
Como mulher negra de uma família com baixa escolaridade, a pedagoga sabe o quanto a educação é fundamental para garantir oportunidade para a população mais pobre. “Sou ativista pela educação porque acredito na mobilização coletiva, que seja capaz de romper com um projeto de sociedade que ainda permeia suas decisões e atitudes pelo colonialismo e o patriarcado. Só por meio da educação teremos um país que construa políticas educacionais que dêem conta de acolher todos/as estudantes em suas diversidades e pluralidades reduzindo discriminações e a exclusão. A educação transforma vidas, ela consegue trazer mais dignidade para as pessoas, sobretudo para as meninas negras que encontram barreiras impostas pelo racismo”.
Natural de Salgueiro, no interior de Pernambuco, Givânia Maria tem sua história de vida e ativismo ligada ao Quilombo Conceição das Crioulas, comunidade formada por mulheres que se estabeleceram na região antes mesmo da emancipação da cidade e que se tornou o distrito com a maior população do município. Professora graduada em Letras, Givânia começou a ensinar muito cedo dentro da própria comunidade. A vivência quilombola, que enfrenta dificuldades em diversas esferas, a mobilizou a encontrar formas de melhorar a vida das suas e dos seus conterrâneos.
Em 1996, quando fez a sua primeira graduação, era a única mulher quilombola de Conceição das Crioulas a ingressar no curso superior. “A pauta da Educação entra na minha vida pela própria negação do direito à Educação não só a mim como a meu povo. Toda vida nós de Conceição das Crioulas fomos ensinadas a ser as meninas que iriam trabalhar como empregada doméstica para as famílias brancas. Eu desviei dessa rota por muita força da minha mãe e quando me tornei professora comecei a entender que é a educação que vai transformar a nossa vida como tem transformado”, conta Givânia.
Depois do curso superior, Givânia se especializou em Programação de Ensino e Desenvolvimento Local Sustentável. Em 1996, fundou a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), movimento social brasileiro que defende os direitos das comunidades quilombolas, que está sob a sua coordenação. O ativismo caminhou lado a lado e também pautou sua carreira acadêmica. Mestra em Políticas Públicas e Gestão da Educação pela Universidade de Brasília-UnB (2010-2012) e doutoranda do curso de Sociologia na mesma Universidade (2017- 2020), ela se dedicou a pesquisar sobre educação escolar quilombola, organização de mulheres quilombolas e questões de terras em quilombos.
“Todos os espaços que transitei tem como fundamento o debate sobre a questão quilombola”, pontua. Hoje, além de integrar o Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, Givânia foi convidada a compor a Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala, que vai ajudá-la na missão de realizar pesquisas sobre as altas taxas de evasão escolar entre meninas quilombolas. Ela também fará treinamentos com estudantes e educadoras quilombolas para defenderem o direito das meninas a uma educação quilombola contextualizada e de qualidade.
Para a educadora, a Rede do Fundo Malala tem a capacidade de qualificar e preparar antigas e novas lideranças para a incidência política. “Acredito nesse espaço como meio de fortalecimento de uma luta que não é de agora, mas que pode servir de espaço de formação de liderança de novas mulheres para enfrentarem esse tema que é tão recorrente dentro da educação que é o racismo caso com o machismo, que exclui mulheres não só do direito à educação e também de outros direitos básicos que elas são privadas”.
Na comunidade de origem de Cássia, nos arredores do Cabo de Santo Agostinho, muitas famílias viviam na pobreza e não tinham acesso a água encanada e eletricidade. Para melhorar essas condições, as mulheres do bairro se mobilizaram e exigiram que o governo municipal abrisse uma creche para que pudessem trabalhar e ajudar no sustento de suas famílias. O governo concordou com as demandas e abriu uma creche administrada pelo Centro das Mulheres do Cabo (CMC). Cassia frequentou a creche do CMC quando criança e, desde 2011, atua como coordenadora de projetos da organização, que promove o apoio às meninas do Cabo. Por meio de seu trabalho, ela ajuda meninas a entenderem a importância da Educação.
Bacharel em Ciências Sociais, licenciatura plena em Pedagogia pela UFPE, Cássia tem especialização em Gênero, desenvolvimento e políticas públicas. Sua atuação sempre envolveu a defesa dos direitos das meninas e a militância por políticas públicas de gênero, tendo contribuído para a ampliação do Plano Municipal de Política para as Mulheres da cidade do Recife. Cássia também apoia o fórum de Juventudes do Cabo, que atua no enfrentamento ao genocídio da juventude negra e é membra do Conselho Municipal de Educação desde 2014 e do Fórum de Educação desde 2016.
“Desde que entrei no Centro das Mulheres do Cabo trabalho com direito à educação com recorte de gênero, em especial com recorte de gênero no orçamento público”, pontua ela que teve atuação destacada em projetos como Empodera, da Unicef, e Projeto Raízes Vivas, de enfrentamento a gravidez na adolescência.
Como integrante da Rede de Ativistas do Fundo Malala, Cássia treinou meninas adolescentes do projeto “Meninas em Movimento pela Educação para realizarem a coleta e análise de dados que fazem parte da pesquisa “Diagnóstico Participativo sobre a Evasão Escolar das Meninas e Jovens Mulheres do Cabo de Santo Agostinho (PE). O estudo, que foi lançado em abril passado, teve como objetivo levantar as razões pelas quais as meninas abandonam as escolas públicas. Cassia atuou no sentido de ensinar às meninas habilidades de oratória e mídia para abordar as descobertas de suas pesquisas por meio de campanhas de advocacia e no programa de rádio do CMC, Rádio Mulher.
A ativista, que também já atuou no Instituto Paulo Freire, observa que o caminho para construir um país mais igualitário para as mulheres é apostando em políticas públicas que transformem o ensino público em um lugar que auxilie meninas a desenvolverem suas autonomias. “Acredito que, através da Educação, podemos mudar vidas, garantir mobilidade social e dignidade. Eu tive minha vida mudada pela educação e desejo que muitas meninas também tenham essa oportunidade de sonhar com uma vida melhor”.
Rogério Barata começou a escrever sua trajetória profissional e de militante com a população em extrema vulnerabilidade social como educador na década de 80, quando atuou com adolescentes em situação de Liberdade Assistida, antes mesmo do Estatuto da Criança e Adolescente. Viveu boa parte da sua vida pelas ladeiras de Olinda, mas hoje mora em Recife, na comunidade de Campina do Barreto, mas segue em trânsito entre as cidades-irmãs. Cursou Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e gosta de dizer que a sua especialização é popular, adquiriu com o povo.
“A pauta da educação na minha vida de militante e, posteriormente, profissional, iniciou-se com a experiência com o teatro de rua, que é um teatro educativo, de despertar da consciência, de desenvolvimento de um olhar crítico sobre a realidade. Isso são questões estruturantes do processo de ensino-aprendizagem, um eixo estruturante da Educação”, comenta. Foi a partir dessa experiência que ele começou a construir sua identificação no âmbito profissional/acadêmico com a Educação, pela qual já militava no trabalho de teatro de rua.
Rogério atua no Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), onde compõe a equipe de Educação para realização de diversas pesquisas educacionais sobre as alternativas forjadas pelas camadas populares da RMR para garantir seu direito à educação escolar; sobre a relação entre Educação, Trabalho e Pobreza, do ponto de vista da população mais excluída de PE; sobre a Repetência Escolar, na perspectiva das (os) estudantes, entre outras pesquisas.
Atualmente, desenvolve com sua equipe o projeto Direito à Educação Escolar das Meninas Quilombolas de Mirandiba, sertão central de PE, numa parceria com a Comissão Estadual das Comunidades Quilombolas de PE, a ASCQUIMI – Articulação das Comunidades Quilombolas de Mirandiba com o apoio e parceria do Fundo Malala, junto ao qual é componente da Rede Mundial de Ativistas pela Educação no Brasil.
Com este projeto, juntamente com equipe e o movimento quilombola de Mirandiba, colaborou com a formulação e institucionalização das Diretrizes Curriculares Municipais da Educação Escolar Quilombola como Lei Municipal. Esta ação vem fortalecendo o movimento quilombola local na luta em defesa e pela efetivação de seu Direito à Educação Escolar contextualizada e de qualidade.
Para Rogério, o ativismo é um lugar fundamental na luta pelos direitos humanos, em especial o direito à educação. “É um trabalho constante, um trabalho que tem várias frentes”, defende. “O ativista não só pensa numa perspectiva de garantir o direito materializado na forma de políticas públicas por meio da incidência política, mas pensa também nas formas como essa educação se constrói e acontece dentro das próprias escolas. O ativista compreende que a educação tem uma abrangência na sua definição de concepção, que ela está para além dos muros das escolas. O ativismo é uma ação permanente e um suporte na luta pela garantia dessa qualidade para quem está na educação mais, vamos dizer, estritamente na sala de aula. O ativista está para além dessa atuação direta no processo de ensino-aprendizagem no tocante ao papel da escola.”