Nossa Voz

Artes e subjetividades trans: A poética dos encontros

| 17 de março de 2023
No Grammy 2022, Liniker ganhou a categoria de
Melhor Álbum de Música Popular,
com o álbum “Índigo Borboleta Anil”.

“Hoje algo histórico acontece na história do meu país: é a primeira vez que uma artista transgênero ganha um Grammy”, enfatizou a cantora, compositora e atriz Liniker, em discurso no Grammy Latino, em novembro de 2022. O prêmio de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira por seu primeiro álbum solo, Índigo Borboleta Anil, é uma resposta a grandiosidade da cantora e a conexão do público com o trabalho. A voz calorosa, equilibrada por uma potência e leveza envolventes, assina músicas de sucesso desde o lançamento. Cantando os amores com o Soul, o R&B, o Blues e a MPB, mulher trans e negra, Liniker é uma das referências da música brasileira.

Enfatizar os recortes sociais aos quais a cantora pertence é fundamental para localizar suas lutas, compreender a potência de seu trabalho e o significativo passo histórico que representa. O espaço de reconhecimento e valorização é reflexo de uma luta que perpassa a história e que reivindica, antes de tudo, o direito à própria existência.

“Com certeza, foi no teatro onde tudo começou. […] Ali eu soube que eu tinha um corpo, que eu tinha voz, que eu podia usar outras roupas”. Em vídeo publicado em seu perfil no Instagram, a multiartista carioca Aretha Sadick, conta a relação com o teatro. Dois minutos e meio são suficientes para envolver e tocar quem a assiste falar, com vivacidade, sobre sua trajetória na cena, seu nascimento. Desde os debates que questionam o conceito de feminilidade, aos processos de reencontros com o teatro, Aretha nasceu nos palcos. “Foi a primeira vez que a minha feminilidade foi aplaudida em público”, conta.

Dos transbordamentos

As obras de arte têm, em maior ou menor escala, subjetividades das autoras, antes mesmo da assinatura final.

“A nossa arte sempre vai ter a nossa cara e o nosso jeito. Ser reconhecida e identificada através do nosso trabalho, diz muito das possibilidades de abrangência desse corpo”. 

– Giulia Maria

Entusiasta da fotografia desde os 7 anos, foi a partir dos 20 que Giulia viu no seu trabalho um potencial de expansão de si mesma, da sua negritude e travestilidade. Seus processos internos são expressados artisticamente. “Eu estava nesse momento de me reconhecer uma pessoa preta, mas eu não tinha referências de pessoas pretas sendo fotografadas e pessoas pretas fotografando. Também não via a beleza trans e travesti, próxima a mim, sendo fotografada, identificada. Eu precisava mostrar que a minha beleza, e a de tantas outras pessoas, também existe”, conta.

Com o auxílio da câmera e um olhar sensível, contribui na construção da autoestima de pessoas que a cidade e o país insistem em tentar invisibilizar. A fotógrafa e modelo também se vê em seus trabalhos. Ela ressalta: A minha autoestima é construção da autoestima de outras pessoas. É muito especial saber que você tá construindo algo seu, mas que vem do múltiplo e volta pro múltiplo”.

Foi a partir da observação de problemas sociais do Recife, que a atravessavam diretamente, que a artista precisou realizar o movimento contrário ao cenário de desigualdade.

Como é possível a cidade da multicultura limitar a arte?

As barreiras para a vivência e expressividade artística de mulheres trans e travestis são significativas. “Recife é uma cidade muito difícil pra mim. Eu vivo em Recife desde que eu nasci e já passei por todos os teatros da cidade. Então cada lugar de Recife tem uma dor e um sofrimento engatilhador, porque arte pra mim nunca foi fácil”, a atriz, performer, diretora e produtora cultural recifense Sophia William, relembra os momentos que foi questionada, ou invalidada, mesmo em ambientes que validam de uma suposta narrativa plural. “Quando se tem uma pessoa trans no elenco, na produção, parece que não pode ter outra pessoa trans, quando se tem uma mulher negra, parece que não pode ter outras. Isso acaba reverberando em nossos corpos. Então aquele espaço que se diz diverso é na verdade um espaço de cotas limitadas”.

Neste cenário, que sugere uma inexistência de espaços, exige dessa população a necessidade de realizar movimentos maiores, até exaustivos, de produção, criatividade e participação, na tentativa de ter sua arte valorizada. “Muita gente não me conhece enquanto atriz, bailarina e produtora ao mesmo tempo, porque eu preciso ficar passeando por esses universos pra tentar me manter viva, preciso de dinheiro pra me alimentar, então a gente precisa fazer várias funções para se manter e continuar fazendo o que gosta”.

Como consequência de um ritmo acelerado, que não permite o descanso, a produtora fala de seu cansaço. “As pessoas querem o meu corpo nas ruas, as pessoas se acostumam a ver o meu sendo violado, mas não nos palcos. O tempo todo eu tenho que provar pra sociedade que sou capaz, que eu sou artista e sou mulher. Ter uma história de 20 anos de luta no meio artístico e ser considerada apenas há 5, é muito triste”.

Disputa de narrativas

Há uma tendência de mudança de narrativa nos últimos anos, com a atuação de mídias e grupos independentes que se propõem a construir espaços e viabilizar oportunidades. Sophia relata que começou a produzir ao perceber as lacunas: “Estar na produção também foi uma saída que encontrei para acessar a arte e determinados espaços com o meu corpo. Começar a produzir também veio de uma necessidade que eu via, desde que comecei a trabalhar com dança e teatro, de haver produções na área abraçando esse trabalho.”

Assim, diante das dores, a artista ressignifica a própria narrativa ao continuar expressando-se em arte de diferentes formas. Com o tempo passou a se entender como poetisa e a pôr suas reivindicações em palavras. “Quando passei pela transição, essa poesia transicionou comigo e chegou num lugar de protesto. Antes o que eu guardava pra mim, passei a colocar para fora pras pessoas entenderem, de uma forma poética, o que dói e como dói”.

Assim como Giulia e Sophia, tantas outras são apoio e contribuem para a ocupação de espaços, para a valorização de seus trabalhos e para a permanência digna de corpos trans nas artes. Reverenciar essas artistas é uma forma de celebrar as manifestações e apoiar as lutas.

Saiba mais sobre elas

Sophia William é atriz, performer, poetisa, roteirista, arte-educadora e produtora cultural, formada em Licenciatura em Dança pela UFPE, produtora e integrante do Coletivo de Dança-Teatro Agridoce. @teatroagridoce

Giulia Maria trabalha com fotografia, desde a produção de imagem, assistência, a modelagem. @thundertry@nofucksgiulia

Texto por Luana Farias, estagiária de comunicação do Cendhec

Leia Sophia

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