“Somos duas mulheres negras e lésbicas, a gente acaba aprendendo a se defender e a atacar também”, diz Janielly Azevedo, 34 anos. O mês da visibilidade lésbica demarca o enfrentamento a lesbofobia e a discussão de políticas públicas voltadas para a comunidade. Nesta entrevista ao Afrontosas, vamos conhecer sobre a maternidade e união de Janielly e Jéssica e sobre sua geografia afetiva familiar — atravessadas pelo amor e ancestralidade.
Janielly Azevedo e Jéssica Lopes se conheceram em meados de 2016, a partir da construção da primeira ocupação feminista, que deu origem a Coletiva Periféricas, no Ibura, em Recife. Apesar de fazerem parte do mesmo coletivo, a aproximação se deu por trabalharem juntas com movimento social. Janielly tem uma história marcada por lutas dentro da comunidade onde reside, e com isso veio a fundação do Espaço Cultural das Marias, na UR 11. “Nessa época na verdade, eu já gostava dela e soltava umas indiretas, mas sempre ficava na brincadeira, porque eu tinha medo de confundir as coisas e atrapalhar nossa amizade, nesse momento ficamos bem mais próximas, amigas mesmo, e ela já estava grávida da nossa outra filha”, relembra Jéssica ao contar sobre como conheceu Janielly.
“Eu e Janielly discordávamos de muitas coisas dentro do coletivo, e essa aproximação com ela se deu pela nossa filha mesmo”. Apesar de algumas diferenças, estão juntas há 8 anos, numa dinâmica bastante firme — nesse percurso, Jéssica foi morar com Janielly, sua primeira filha, hoje com 18 anos, e sua sogra. Durante esse movimento, alguns meses após o nascimento da segunda filha do casal, que tem agora 6 anos, as duas foram morar só com as meninas em uma casa onde residem até hoje. “Ela que estava na hora do parto, ela que cortou o cordão umbilical , ela que sempre dividiu comigo essa responsabilidade de ser mãe, que assumiu e cuidou das meninas, que se preocupa e que divide comigo”, conta Janielly.
“Eu já era mãe das meninas antes de um papel, o registro de nascimento delas com meu nome só vai facilitar no processo burocrático. Mas elas sempre foram minhas filhas, sempre fui chamada de mãe por elas e fui tratada como tal pela minha companheira. É incrível ser mãe em construção, todo dia eu aprendo com elas. É difícil também porque são duas cabecinhas diferentes, cada uma com seu caráter, suas vontades, mas ainda assim, é incrível, eu acho que aprendo mais do que ensino, às vezes”, conta Jéssica com sobriedade.
Em outubro de 2018, após o resultado das eleições presidenciais e com o aumento de uma onda conservadora que ameaçava a liberdade e o amor entre pessoas do mesmo sexo, Janielly e Jéssica casaram-se no mutirão de casamentos coletivos lgbtqia+ no mesmo ano. “A gente casou às pressas, quando o ‘inominável’ se elegeu, casamos em dezembro, no cartório. Porque o que as pessoas estavam dizendo é que seria proibido nosso direito de casar. A gente casou porque não queria perder nossos direitos. E como que iria ficar nossas filhas?”, explica Janielly.
Ainda no mesmo ano, o casal também expandiu seu afeto ao acolher uma terceira filha, hoje com 23 anos. “Além do casamento, ganhamos um outro presente, nossa terceira filha que veio morar com a gente e mora até hoje. Era só nossa filha de santo e agora é nossa filha também. Tivemos a honra de casar perante a Jurema Sagrada. Uns amigos na época, junto com as pessoas do nosso terreiro, nosso pai de santo e nossas filhas organizaram e nossos padrinhos da jurema concretizaram, foi lindo demais”, conta Jéssica.
O AMOR É DECOLONIAL
Amar a negritude, amar uma mulher e construir uma família, é uma resistência política que rompe com o conceito da colonialidade. Quando pensamos em uma família, em que configuração familiar estamos pensando? — na sociedade, a construção do conceito familiar vem de longa data. Como conta Janielly: “A gente constrói algo muito maior que essa sociedade nos impôs, que é um provedor, uma dona de casa, é algo muito maior. É uma relação de amor, de afeto, de cuidado e diálogo. É muito difícil ser mulher negra, sapatão, macumbeira de comunidade, é sempre um agravo, acho que a missão mais difícil do mundo é a nossa”.
A vivência do amor entre duas mulheres pretas na criação de suas filhas dentro da comunidade, mostra também que é possível criá-las em um ambiente saudável. “As pessoas daqui entendem mais do que eu esperei, obviamente não são todas. A minha família ainda é bem resistente em relação a isso, muito mais minha mãe, mas depois de um tempo as pessoas entendem. Então não deixamos que as pessoas de fora interfiram nisso”, conta Jéssica.
Ambas construíram uma família — e não essas de novelas e filmes, como diz Jéssica, “E na realidade, as coisas são bem diferentes”. As histórias que estão sendo contadas hoje, são histórias de famílias que sempre existiram, como a de Nicinha e Jurema, casal de mulheres negras, lésbicas, mães e casadas há 40 anos, moradoras da favela da Rocinha que tiveram sua história contada em uma série documental na Netflix. Essa não foi a primeira e única história, — em tempos como este, amar é decolonizar.