A alfabetização de mulheres negras e periféricas é um dos caminhos essenciais para o empoderamento político, que por sua vez é um passo fundamental em direção à justiça social, equidade de gênero e combate ao racismo. Este processo de aprendizado não se limita apenas à aquisição de habilidades de leitura e escrita, mas abrange a construção de uma consciência crítica, a ampliação do acesso a informações, permitindo que elas se tornem participantes ativas na formulação de políticas, na participação social e na defesa de seus direitos.
O dia em que Ruby Bridges foi à escola
Em 1960 a pequena Ruby Bridges, aos seis anos de idade, estava prestes a entrar para a história durante seu primeiro dia de aula na Escola William Frantz, em Nova Orleans, EUA. Ela estava com um vestido na linha dos joelhos com laço borboleta na altura do umbigo, de onde estendia-se uma saia estruturada. O vestido tinha uma gola redonda e mangas curtas. Por cima, um casaco branco que a protegia do frio, com botões alinhados no centro.
Os sapatos eram de verniz pretos com fivelas brilhantes, que nem os da personagem Doroty em O Mágico de Oz. Ruby usava meias na altura do tornozelo, brancas com leve bordado no contorno superior. Seu cabelo tinha uma tiara de trança fina que corria ao longo da cabeça com um laço branco do lado direito. Em uma mão segurava uma pequena bolsa marrom quadriculada estilo maleta, contendo seus materiais escolares.
Enquanto descia os degraus da escola, escoltada por quatro policiais federais, com o dobro de sua altura, o olhar determinado em seu rosto era evidente. Ela parecia alheia à multidão de pessoas que se aglomerava do lado de fora da escola, protestando contra sua presença. Sua expressão demonstrava coragem, inocência e plenitude.
Essa cena icônica de Ruby Bridges enfrentando o racismo mostra a força da educação no processo de empoderamento das mulheres negras. A imagem captura a sabedoria e determinação de uma criança que abriu um importante caminho no enfrentamento às normas segregacionistas de seu país e inspirou tantas outras meninas e mulheres em todo o mundo.
Ruby Bridges se tornou a primeira criança negra a frequentar a Escola Primária William Frantz, anteriormente exclusiva para crianças brancas. estamos falando da década de 1960, praticamente “ontem” em termos de História Mundial. Isso aconteceu devido a uma decisão histórica da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Brown v. Board of Education, que determinou como inconstitucional a segregação racial nas escolas. Ruby e sua família enfrentaram hostilidade e ameaças no estado da Lousiana mas persistiram e resistiram para que a menina exercesse seu direito pleno ao acesso e permanência na educação.
Após concluir o ensino médio, Ruby estudou na Universidade do Kansas. Continuou a trabalhar como defensora dos direitos civis, tendo como foco a igualdade de oportunidades educacionais. Fundou então a Ruby Bridges Foundation, uma organização dedicada a promover a tolerância, a inclusão e a justiça social na educação. A fundação trabalha para inspirar jovens a enfrentar o racismo e a discriminação, além de fornecer recursos para educadoras/es e escolas na criação de ambientes inclusivos e equitativos.
Projeto Passarinhas: Alfabetização para impulsionar voos de mulheres pretas
Saindo da década de sessenta e chegando na América Latina, no nordeste do Brasil , vamos para o ano de 1997 numa comunidade pobre localizada na periferia do Recife, onde a luta pela sobrevivência sempre foi uma constante para as mulheres negras. Estamos falando do bairro de Passarinho. A comunidade é parte da Região Política Administrativa (RPA 3) da capital pernambucana e originou-se de duas grandes ocupações. De acordo com dados da Prefeitura do Recife, o bairro abriga atualmente mais de 20 mil habitantes. Por lá, e não diferente de inúmeras periferias brasileiras os direitos sociais enfrentam desafios significativos, com a disponibilidade limitada de políticas públicas. A comunidade conta apenas com uma escola municipal de ensino fundamental, que atende a pouco mais de 400 crianças, sem oferecer a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além disso, há apenas um posto de saúde público no bairro, que fica sobrecarregado com mais de 4.000 atendimentos por mês, uma quantidade muito aquém da necessidade local.
Porém, no final da década de 90 os desafios dessa comunidade eram ainda mais complicados. Ali mulheres compartilhavam não apenas a dificuldade de atravessar horas numa Kombi lotada de passageiras/os, único transporte alternativo disponível para as/os moradoras/es (naquela época sequer havia oferta de transporte público para aquela comunidade) para trabalhar nas casas de famílias abastadas. Elas também dividiam uma profunda preocupação com a falta de políticas públicas naquela região e os problemas que enfrentavam por serem mulheres, pobres e negras.
Enquanto enfrentavam o cansativo percurso, a força de suas conversas começou a moldar uma visão coletiva de transformação. Elas compartilhavam histórias de discriminação, violência doméstica e a luta diária para garantir o sustento de suas famílias. Foi em um dessas viagens que um passageiro disse: “Acho que vocês deviam formar um grupo só de mulheres para atuar na comunidade e lutar por justiça.”
Essa simples sugestão foi o ponto de partida para o nascimento do Grupo Espaço Mulher em 1999, um coletivo formado por mulheres negras determinadas a enfrentar as adversidades que a sociedade lhes impõe cotidianamente. Elas se uniram com um objetivo evidente: Enfrentar a violência de gênero, o racismo e lutar por justiça social. O grupo é composto principalmente por trabalhadoras domésticas com idades que variam de 19 a 78 anos, em sua maioria idosas. São 50 integrantes ao todo, reunidas num espaço de expressão política e de mobilização social. O grupo Também desempenha um papel fundamental como rede de acolhimento e cuidados, que se estende para a comunidade em geral. “Nunca foi fácil para nós mulheres negras e periféricas. Eu fui levada a interromper meus estudos na 5° série do antigo ginasial, minha vó dizia que eu não precisava mais estudar. Eu me casei, tive meu primeiro filho aos 18 anos mas sempre queria voltar e terminar meus estudos, isso sempre foi um ponto importante pra mim e para tantas companheiras que vivenciavam a mesma situação”, conta Edicléa Santos, co-fundadora e integrante do Espaço Mulher.
Em 2002, aos 45 anos Clea, como é conhecida na comunidade e na militância feminista, conseguiu concluir juntamente com um grupo de mulheres do espaço o ensino fundamental e médio a partir de uma parceria entre o coletivo e o Sindicato das Domésticas. “Juntas, percebemos e estávamos conscientes de que muitas outras mulheres daqui não tiveram a oportunidade de estudar, e algumas sequer eram alfabetizadas e queriam muito poder concluir seus estudos. Foi então que em 2021 o coletivo concebeu o Projeto Passarinhas. Imagina que a gente começou com cinco companheiras e já vamos para mais de vinte”, orgulha-se Cléa, hoje com 66 anos. O nome do projeto é uma metáfora que traz a ideia de empoderamento, evocando a imagem de mulheres voando para longe das gaiolas que as aprisionam.
A iniciativa é voltada para a alfabetização de mulheres residentes no bairro e ocorre em encontros semanais na sede da organização. Inicialmente os materiais disponíveis eram bem escassos: dois lápis pilotos para escrever em lousa, um apagador, algumas bancas escolares danificadas, poucos cadernos, lápis e borrachas doados por uma professora e um quadro branco parcialmente danificado.
Mesmo diante das dificuldades iniciais o projeto manteve suas ações e definiu como missão contribuir para a promoção dos direitos humanos abordando questões como o enfrentamento a violações no campo de gênero, raça e classe social. A interseção dessas opressões já é vivenciada pelas mulheres de Passarinho cotidianamente.
Aprendendo a voar
“Trabalhamos a leitura e escrita através da rotina delas: o que tem na feira que frequentam por exemplo, levando em consideração sempre o que está inserido no universo de cada uma. Quando uma pessoa não está alfabetizada decora o ônibus que precisa pegar pela cor ou mesmo pergunta a outras pessoas no ponto. Muitas estudantes daqui vivenciaram isso e hoje já é bem diferente, chegam para mim e contam: ‘Professora, peguei o ônibus sem precisar perguntar, porque li o nome’. Isso pra mim é muito gratificante. Hoje também elas estão mais atentas sobre habilidades da matemática, como o troco e valores.” Relata orgulhosa a professora Ana Cristina, uma das educadoras voluntárias do projeto.
Ana também ressalta que é essencial no processo de alfabetização ter como referência a realidade das mulheres para despertar o senso crítico incorporando debates e rodas de diálogo com temas que as atravessam no dia-a-dia: “Trabalhamos muito com textos políticos dos movimentos sociais dos quais elas já participam, como a cartilha da Marcha das Margaridas, folhetos da agricultura familiar, músicas para compor as aulas. A alfabetização vai nessa perspectiva de partir do mundo delas. Estamos implantando agora o Varal do cotidiano, onde elas levam papel para casa e escrevem uma palavra ou uma frase que remeta aquele dia delas: se foram ao mercado, se foram na vizinha… etc, o intuito é incentivar a escrita. Ao final do ano vamos fazer um livreto de memórias para que possam reler o que escreveram”, aponta a professora.
Hoje, o projeto conta com vinte e cinco mulheres inscritas na modalidade EJA e recentemente expandiu para crianças do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, com vinte e quatro participantes, apoiadas por três educadoras voluntárias: uma professora de língua portuguesa, uma de matemática e uma de alfabetização. Com a ampliação da iniciativa aumentou também a necessidade de buscar mais apoio no intuito de garantir a continuidade das atividades para que meninas e mulheres possam multiplicar a aprendizagem e fortalecer outras tantas em direção ao fim das estruturas patriarcais que historicamente mantiveram tantas passarinhas em cárceres. Pedindo licença e parafraseando aquela canção de Caetano: “Mulher é pra brilhar, voar, luzir, respirar o ar pelo nariz e ser feliz”.