Nossa Voz
Fotos: Alcione Ferreira. Passo a passo do preparo do Pé de Moleque. Quilombo de Castainho. Garanhuns/PE.

A resistência de saberes ancestrais e a subsistência familiar na culinária quilombola

| 25 de agosto de 2023
Reportagem: Luana Farias Fotos: Alcione Ferreira

A conservação de tradições e de conhecimentos culturais possibilita a continuidade da(s) identidade(s), a valorização da memória e a presentificação da ancestralidade – é, portanto, uma forma de resistência. Para rememorar as lutas, o Dia Internacional da Memória do Tráfico Negreiro e sua Abolição é demarcado no dia 23 de agosto em menção à população que, em 1791, resistiu contra as explorações e movimentou-se pela abolição do tráfico transatlântico de pessoas africanas.

Compreender as múltiplas formas de resistência da população afro-brasileira, ao longo dos séculos, é reconhecer a importância e a vivacidade das raízes culturais do país, sobretudo no Nordeste brasileiro. Em Pernambuco, as manifestações de matriz africana, assim como as indígenas, formam a cultura e a construção histórica do Estado.

Dentro da esfera de saberes tradicionais, a culinária é também um forte canal de acesso à multiplicidade de histórias da região e resiste com as populações. Sendo assim, as comidas tradicionais de Pernambuco, enquanto representantes de um eixo cultural do estado, são também, em muitos casos, um instrumento de sobrevivência econômica de famílias.

A alimentação também é política. Patrimônios imateriais, as receitas centenárias nos quilombos, por exemplo, carregam consigo as histórias e a resistência das mãos que as produzem e dos ensinamentos passados. Assim como aconteceu com Carla Lopes, 41, moradora do Quilombo Castainho, em Garanhuns, no agreste pernambucano.

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Ancestralidade e sobrevivência a partir dos alimentos

Preparo do Pé de Moleque na comunidade quilombola de Castainho em Garanhuns/PE

Cozinhar é geracional na família de Carla. Moradora do quilombo Castainho, localizado na zona rural do município de Garanhuns, região agreste do estado de Pernambuco, a mulher dá seguimento ao ofício da mãe e da avó, e continua comercializando as comidas que aprendeu ainda na infância.

“Muitas vezes a gente já dormiu sem alimento”, conta a quilombola. Desempregados, os pais encontraram no Beiju de Caco a possibilidade de afastamento da insegurança alimentar e financeira. Foi enquanto buscava alternativas para cessar a fome dos quatro filhos que a mãe plantou mandioca e passou a preparar o beiju de caco para as refeições de casa.

Beiju de caco, pé-de-moleque e tapioca foram as comidas centenárias que mudaram a rota da família. Não demorou muito até que a mãe passasse a comercializar em feiras as receitas preparadas. A resposta do sucesso das vendas foi um marco importante na infância de Carla. “Eu lembro como se fosse hoje quando ela chegou da feira, eu saí correndo pra abraçar ela”, a mulher conta que esperava a mãe ainda na estrada e lembra a emoção do retorno. “O balaio que ela levava em cima da cabeça tava cheio de comida. A gente não ia mais passar fome. Ela chorava de um lado e a gente de outro”, relembra
emocionada.

“O balaio que ela [a mãe] levava em cima da cabeça tava cheio de comida. A gente não ia mais passar fome. Ela chorava de um lado e a gente de outro”.

Carla Lopes, moradora da Comunidade Quilombola de Castainho, PE.

Aos 14 anos, a quilombola já ajudava na preparação e venda das receitas tradicionais. Nesse mesmo período Carla pausou os estudos para continuar a ajudar a mãe nas vendas, concluindo anos mais tarde. É uma narrativa que se repete entre as muitas meninas em contextos de vulnerabilidade social e econômica que, mesmo com pouca idade, deparam-se com a cruel opção de abrir mão da educação pelo trabalho. Por falta de políticas públicas e
como reflexo das diversas violações do Estado, as alternativas são escassas.

Mãe de duas meninas, de 17 e 11 anos, atualmente, Carla Lopes trabalha como auxiliar de serviços gerais numa escola e mantém o comércio de tapioca, pé-de-moleque e beiju de caco como uma de suas rendas financeiras. Ela enfatiza a importância das comidas tradicionais e ancestrais para a comunidade de Castainho. Assim como ocorreu na sua família, a plantação da mandioca para consumo e a comercialização dos pratos foram e são fundamentais para o sustento de muitos outros núcleos familiares no Quilombo.

Terra, raiz e mãos negras: O plantio da mandioca como principal matéria prima para subsistência familiar na região de Castainho/PE.

“Quilombo é uma história. É uma palavra que tem história”, afirmava a historiadora e ativista negra Maria Beatriz Nascimento, em pesquisas sobre a relação entre quilombo, corpo e território. Primeira comunidade quilombola titulada pelo governo do Estado de Pernambuco, o Quilombo Castainho é símbolo de resistência. Castainho foi formado em 1695 por negras e negros fugidos do massacre no Quilombo dos Palmares. O território é marcado pela luta e pela força da cultura ancestral.

É possível conhecer mais sobre as receitas, histórias e modos de fazer de comunidades quilombolas , a exemplo de Castainho, no e-book de acesso gratuito Cozinha de Quilombo. A obra, uma salvaguarda do patrimônio imaterial, visita os quilombos Angico, Castainho, Curiquinha dos Negros, Flores, Lagoa da Pedra, Serrote do Gado Brabo e Timbó e documenta receitas e modos de preparo de comidas históricas e tradições das regiões. Cozinha de Quilombo é resultado de um projeto de extensão do IFPE – Campus Garanhuns, desenvolvido nos anos de 2019 e 2020, com apoio da Lei Aldir Blanc. O projeto tem autoria de Edvania Kehrle e Halda Simões, da gastrônoma Twilla Barbosa e conta com fotografias e curadoria de imagens de Alcione Ferreira, além das fotos produzidas por moradoras e moradores das comunidades visitadas e das e dos estudantes do Instituto Federal que integraram o projeto.

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