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“A poesia libertou a gente do preconceito”: conheça Anara Nayara, poeta da comunidade Curiquinha dos Negros

| 15 de março de 2024

Reportagem: Maria Clara Monteiro / Fotos: Alcione Ferreira

Embaixo do cajueiro a história começa. É lá que se transmite o pertencimento, a territorialidade e a resistência de alguns povos. Dentre as muitas formas de definição de quilombo, podemos dizer que é dessa maneira que se apresenta a comunidade Curiquinha dos Negros, localizada entre os municípios de Garanhuns e Brejão, no agreste de Pernambuco. 

Vibrando na potencialidade de sua juventude, conhecemos Anara Nayara, de 13 anos. A estudante do 9º ano do Ensino Fundamental II, que é poeta em tempo integral, nasceu e cresceu em Curiquinha, morando com a sua avó materna, Marina Barbosa. A infância, cercada de diversão e liberdade, ainda é recente em sua memória e cativa um lugar especial em seu interior. “Foi muito bom. Eu sempre brincava com as minhas primas. A gente jogava muita bola, capoeira. De tudo um pouco a gente fazia”, relembra. 

As raízes de Anara são fincadas em terra firme, frutífera. Desde cedo, ela acompanha os passos dos mais velhos, que lhe transmitem ensinamentos na certeza de que serão perpassados por onde a jovem pisar. Mirando em um espelho, ela se vê em suas avós, que lhe confidenciam saberes e tradições da comunidade. Marina, 71 anos, é uma das mais idosas da comunidade e desde cedo Anara caminha com a avó para colher feijão guandu, leguminosa que é a base de muitas receitas tradicionais da região.

Foi a partir dessa influência que, ainda criança, ela se tornou benzedeira. Com o ramo do feijão guandu, ela profere ditos e rezas na intenção de abençoar ou auxiliar na cura de alguém doente. “Tudo o que eu vejo, eu tenho vontade de fazer. E aí, quando eu era pequena, aprendi. Hoje, eu sei que eu posso e consigo fazer”, afirma.

O canto da cigarra nos acompanha em quase toda a entrevista. Tida por muitos como um símbolo de transformação e mudança, anunciou, também, a transição de Anara para compreender que mais do que fazer parte do lugar, sua vida está entrelaçada ao território. “Eu quero continuar aqui. Foi onde eu nasci, onde criei minha história. É muito importante para mim”, expressa.

“Ah, comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto do mundo como ele é.” (Carolina Maria de Jesus)

No dia da conversa, Anara vestia uma blusa que estampava o rosto de Carolina Maria de Jesus, escritora, compositora e poeta brasileira, que se tornou conhecida após publicação de seu primeiro livro Quarto de Despejo: Diário de uma favelada (1960).

A inspiração que Carolina deixa para a estudante vai além da escrita: estar no ser e se reconhecer negra. “Antes, eu e minhas primas tínhamos o cabelo crespo. E nós não nos aceitávamos. Elas sofriam muito bullying na escola, e com medo de passar pelo o que elas passaram, eu pedi para minha mãe alisar meu cabelo. Eu sinto falta do meu cabelo cacheado”, revela. 

Esse processo aponta marcas que o racismo deixou em sua vida. No entanto, ela não se deixou abalar por tais preconceitos. Para reivindicar seu espaço, escancarou portas e janelas. Muito através da poesia, pôde legitimar sua história e ancestralidade que, hoje, atravessam a sua existência.

Por meio do Coletivo Poétnico, fundado pelo poeta da região César Monteiro, Anara se encontrou nas palavras e nos versos, após conhecer algumas escritoras. “Elas vieram aqui com o cabelo cheio, bem cacheado. A gente achou lindo. Daí, a gente não ligou mais para a opinião dos outros. Eu também não sabia ler, mas queria aprender uma poesia. E elas me ensinaram. A poesia libertou a gente do preconceito”, conta.

Declamando, ela entende que conserva viva a sua memória ancestral. Confira, no vídeo abaixo, um trecho da sua arte:

“Eu quero preservar aqui como se fosse meu último desejo de vida. É a minha raiz”. 

A frase acima, dita por Anara, reflete seu anseio de vida. A ligação é tanta que quando questionada sobre a relação entre poesia e território, ela não teve palavras. Seus olhos brilharam, a respiração ficou curta e seus lábios tremeram. São nesses momentos que a emoção transcende a fala e subsiste por si só. 

Ainda assim, mesmo diante da importância geográfica e cultural, Curiquinha dos Negros não foi reconhecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). De acordo com o último Censo, realizado em 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 4,3% da população quilombola reside em territórios titulados. 

Esse apagamento e distanciamento descolam a realidade dos habitantes que precisam continuar resistindo todos os dias diante dos constantes obstáculos, medos e inseguranças.

De modo que os frutos brotam da terra, a força desses moradores vem do chão que pisam, cuidam e protegem. Por isso, Anara é árvore. Estrutura secular. Infinita em seus laços e na sua longa história, preserva o seu lugar como único no mundo. E, na verdade, ele é mesmo. 

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