A história da jovem deputada estadual Rosa Amorim entrelaçou-se com o poema “A Flor e a Náusea” do livro A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. Ambos são exemplos de como a luta e a busca por justiça e igualdade podem florescer mesmo em meio ao asfalto da indiferença e do conformismo. Rosa, assim como a flor descrita no poema, desafiou o mundo com sua determinação e provou, mostrando que mesmo na feição dura da realidade, é possível encontrar a harmonia de uma luta genuína pela transformação social.
Nascida em um Brasil de desigualdades e injustiças, ela trilhou o caminho da militância social desde a infância até tornar-se, aos 26 anos, a primeira integrante do Movimento dos Sem Terra (MST) a conquistar uma cadeira na Assembleia Legislativa de Pernambuco.
Filha de Jaime Amorim, catarinense, e Rubneuza Leandro, baiana, ambos dirigentes do Movimento Sem Terra em Pernambuco e engajados na luta pela reforma agrária e justiça social, Rosa carrega em seu nome a simbologia de sua jornada. Como que brotando em campos áridos, surge no cenário desafiador do agreste pernambucano, entre a zona urbana, no centro de Caruaru e o assentamento Normandia, na área rural da cidade.
Rosa nasceu na adversidade mas sua presença também é uma interrupção no ritmo usual da cidade e do campo, convidando aquelas e aqueles que estavam próximos a fazer valer a mensagem da justiça por terra e liberdade. Ela faz parte da primeira geração de assentadas/os do maior movimento em prol da reforma agrária no mundo. Seu nome ainda não estava inscrito nas assembleias populares e foros de discussão, mas sua ação intuitiva e dedicada ia a passos firmes marcando sua história que é a todo tempo contada em primeira pessoa do plural. Talvez tenha sido esse o primeiro de seus grandes aprendizados: conjugar suas narrativas nos enfrentamentos e adversidades, assim como as vitórias, sempre no coletivo.
Rosa cresceu imersa no universo do MST. Acompanhando marchas, ocupações e encontros. Já pulsava ao ritmo dos embates que buscavam melhores condições para o povo do campo e da cidade ainda na barriga de sua mãe “No ano do reconhecimento do assentamento Normandia [1997] foi o ano em que minha mãe estava grávida de mim.” Conta. Na “Ciranda Infantil”, ação educativa do Movimento Sem Terra onde os militantes deixavam seus filhos enquanto se dedicavam às atividades do movimento, Rosa encontrou os primeiros aprendizados. Ali, cultivava a semente do conhecimento e da cultura, que a acompanharia ao longo de sua jornada.
Marcando presença no chão dos assentamentos ou no asfalto das capitais do país enfileirada nas ‘Marchas dos Sem Terrinha’, evento nacional das crianças do movimento, Rosa Amorim foi conhecendo e afirmando suas convicções. “Minha infância foi permeada pela descoberta da luta, da pedagogia sem terra. Eu poderia não ser militante, pois ser militante é uma decisão do indivíduo, uma decisão de classe. Mas eu entendia a luta dos meus pais e crescendo no meio da militância fui me apaixonando pelas lutas do povo. Eu sempre cresci no coletivo.”
Sua infância foi regada também pelas artes. O balé clássico e a dança contemporânea foram trilhas que desbravou, mas foi no teatro que suas raízes se aprofundaram. Aos 11 anos, ingressou no Teatro Experimental de Arte (TEA), onde se descobriu como atriz e encontrou sua forma de expressar as inquietações do mundo ao seu redor. “O MST tem a arte como estratégia na sua construção. Então cresci num ambiente que valorizava a poesia, o teatro. Fui muito estimulada para a arte. Quando mudei de escola para entrar no fundamental II havia um núcleo de arte na frente de onde eu estudava, era o TEA. Vi o cartaz para uma oficina e aquilo me abriu a curiosidade. Comecei a fazer o curso e fui me envolvendo bastante. Fui mergulhando no universo da pesquisa em artes cênicas, viajando já aos 14 anos pelo Brasil com o teatro.”
O despertar para a militância política engajada chegou também na adolescência. No grêmio de sua escola, mobilizava colegas em prol de causas justas, como a luta pela redução das passagens do transporte público e reivindicava a ampliação dos debates em sala de aula sobre as questões mais importantes vivenciadas pelo país. “Tinha muita divergência nas aulas de geografia quando começamos a estudar o modo de produção no Brasil , quando o agronegócio era colocado como desenvolvimento, a gente aprende isso na escola, mas eu apresentava um olhar diferente da cultura hegemônica. No ensino médio eu já enfrentava essas questões. Ali, em 2014, temas como racismo e feminismo não eram abordados na escola, mas estavam chegando naquele momento. Lembro de um professor de sociologia que era contra o feminismo e levava isso para sala de aula, e eu ia para o enfrentamento”. Relembra.
Aos 16 anos, após as “jornadas de junho” de 2013, participou do Levante Popular da Juventude, um movimento urbano em formação naquele momento que Rosa ajudaria a construir.
A vida de Rosa ganhou novas nuances quando ingressou na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2016, para estudar Artes Cênicas. Foi um momento de desafios, marcado pelo golpe que resultou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff e pela aprovação da Emenda Constitucional 55, que congelou recursos para a educação e outras áreas essenciais. A reação das/os estudantes diante da medida levou a ocupações em universidades e escolas do ensino médio por todo o país, e Rosa não se omitiu, pelo contrário, esteve empenhada na ação durante os meses de ocupação. “Como militante e estudante não poderia deixar de estar presente. Foi no Levante Popular da Juventude que me firmei na militância.” Seu compromisso com a luta dos povos do campo e da cidade além de seu engajamento com o movimento estudantil a levou também a assumir a direção de cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE).
A firmeza de suas convicções rendeu-lhe suspensão da universidade por um semestre, em decorrência das ocupações estudantis, mas esse afastamento apenas a aproximou ainda mais das atividades políticas ao lado do MST. “Durante a pandemia ajudei a organizar a campanha ‘Mãos Solidárias’ que destinou mais de 10 tonalidades de alimentos para o povo. Viveríamos ali o momento mais crítico, com o crescimento do bolsonarismo. Mas fizemos uma organização muito bonita.”
No poema, Drummond menciona a presença de uma flor nas ruas, uma presença inesperada. Essa flor rompe o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Da mesma forma, Rosa Amorim surge como quem desafia o cinza da realidade, das estruturas opressoras, e com sua determinação, busca florescer onde a sociedade não esperava.
É quando, para enfrentar o bolsonarismo, o MST decide lançar campanhas em todo o país e Rosa é convidada a participar do pleito de 2022 como candidata na disputa pelo cargo de deputada estadual de Pernambuco pelo Partido dos Trabalhadores (PT) representando o movimento, e novamente ela não hesita. Sua eleição para ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa foi um marco, conquistando um espaço historicamente pouco representativo para os movimentos sociais com mais de 40 mil votos. Seu gabinete, o de número 206, simboliza um novo capítulo na história política de Pernambuco. “Esse espaço não foi feito pra nós. Se chama casa de todos os pernambucanos mas quando a gente vai olhar historicamente quem ocupou aqui foram famílias privilegiadas que tem domínio sobre o poder econômico do nosso estado, muitas vezes latifundiários. É um desafio ter o povo ocupando esse espaço. Sou eu ocupando essa cadeira mas esse é um mandato coletivo. Mais do que eu, Rosa Amorim aqui sentada, é a bandeira do MST fincada nesse assento, e eu dou respostas e trabalho numa perspectiva coletiva e isso já é divergente porque os parlamentares são pautados no sujeito”.
Como fez Drummond em vida e obra, Rosa vem buscando compreender a sua existência e o mundo ao seu redor. As narrativas que os unem, mesmo frente a gerações tão distantes, ainda continuam silenciadas aos ouvidos dos muros que tentam cercar as lutas sociais. O tempo, para ambos, nunca foi de completa justiça; no tempo de Drummond com a era Vargas e no de Rosa com a ascensão do bolsonarismo. Foram e ainda “são tempos de fezes e alguns maus poemas” como diz o poeta, além de alucinações e esperas, porradas e enfrentamentos, revoltas e esforços contínuos.
Dentro do parlamento, Rosa e sua equipe tem se desdobrado em defesa de pautas que transcendem as fronteiras do campo e abraçam a diversidade da sociedade: feminismo, direitos LGBT+, igualdade racial, combate a fome, reconhecimento das comunidades quilombolas e indígenas, além da luta incansável pela educação, são algumas das bandeiras que sua mandata vem empunhando. Recentemente ela e sua equipe desengavetaram o projeto do Estatuto da Igualdade Racial, que foi finalmente sancionado pelo governo do Estado. “Agora Pernambuco tem o seu Estatuto da Igualdade Racial. Ainda vivemos o racismo estrutural, ele é expresso nas classes sociais, no gênero, onde mulheres negras são muito mais afetadas, elas estão nos subempregos, são elas que choram as dores de seus filhos assassinados pela truculência da polícia. O estado precisa tomar pra si a responsabilidade para dar condições a uma reparação histórica.” Reivindica.
Assim como o livro “A Rosa do Povo”, onde Drummond revela a inspiração presente nos enfrentamentos e adversidades da população brasileira, Rosa Amorim personifica essa poesia viva, brotando e afirmando sua existência na luta dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra, cuja trajetória transformou-se em mais um símbolo de esperança para o Brasil. Sua jornada já inspira outras gerações de meninas e adolescentes, negras e periféricas, que estão nesse momento florescendo e irrompendo chãos e asfaltos onde quer que a justiça e a igualdade precisem de vozes plurais, firmes e determinadas. Ao final da entrevista em seu gabinete, Rosa acabou por responder, mesmo sem precisar que perguntasse diretamente, de forma totalmente espontânea e intuitiva, aquele questionamento que o poeta se faz na primeira estrofe dos versos de A Flor e a Náusea: ‘Posso, sem armas, revoltar-me?’ “Nós mulheres podemos estar onde quisermos. Os entraves são muito grandes. Mas a gente tem que se revoltar, a gente precisa carregar com a gente esse sentimento de revolta, e mais do que revolta o sentimento de esperança de que é possível a gente construir uma sociedade melhor com a nossa participação”.