Arte e Reportagem: Alcione Ferreira
No documentário “Almerinda, a luta continua” (2015), da jornalista e produtora Cibele Tenório, um panfleto com uma foto de uma mulher preta com um texto escrito no verso é mostrado para outras mulheres durante um ato em Brasília. O papel circula entre as manifestantes e uma pergunta é lançada por uma jovem curiosa ao ler o nome que identifica a imagem no folheto: “Almerinda Farias Gama. Quem é ela?”. A pergunta da militante não é pontual, tão pouco um caso isolado, inclusive para a autora do texto deste perfil, que gratamente descobriu quem era essa mulher tentando encontrar um gancho jornalístico para o dia 24 de fevereiro, data que demarca a conquista pelo voto feminino no Brasil. Infelizmente, o nome e a trajetória inspiradora de Almerinda Farias Gama, assim como inúmeras mulheres, especialmente negras e periféricas como ela, ainda não tiveram o reconhecimento à altura de suas histórias e do que representam para a emancipação política feminina.
Almerinda Farias Gama nasceu em Maceió (AL) ainda no século XIX, em maio de 1899, faltando apenas um ano para entrar no século XX, período conhecido como o “século da grande modernidade”. Ainda menina, aos 08 anos, mudou-se para o Belém do Pará com seus irmãos para morar com a avó e uma tia. Sua mãe, a professora Eulália Rocha Gama, ficou sem condições financeiras de prover os filhos logo após a morte de seu pai, José Antonio Gama, em 1907. A menina Almerinda ficou um período, até 1916, sem frequentar a escola formal, o que, segundo algumas/ns pesquisadoras/es pode ser um indicador de condições financeiras precárias de sua tia. Ainda assim, por ser uma leitora voraz, Almerinda passaria a produzir textos e poesias, o que a levou anos depois a colaborar com os jornais locais de Belém.
Feminismo de ação
Em 1929 Almerinda se muda para o Rio de Janeiro, após descobrir e revoltar-se com o fato de um colega homem ganhar mais que ela para fazer o mesmo tipo de colaboração para os jornais de Belém. No ano seguinte há um texto seu no Diario da Noite, onde, já integrando a Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino (FBPPF), fundada por Berta Lutz, discorre suas ideias feministas, especialmente no que tange o direito a ocupação de lugares vistos como masculinos. O jornal, que havia lançado uma enquete perguntando se as mulheres poderiam participar da Academia Brasileira de Letras, tinha um reduzido “NÃO” enviado pelo escritor e acadêmico Humberto de Campos como resposta. Elaborada e elegante, Almerinda meteu-lhe uma sofisticada réplica: “esperava uma opinião favorável ou, quando menos, uma justificação eruditamente fundamentada, para apoiar o seu voto contrário ao ingresso da mulher no cenáculo das letras. Tal não se efetivou. Sem apertar a cravelha, o ilustre imortal fez vibrar a corda da ‘tradição’”.
A misoginia estampada nos jornais e revistas diagramados em textos e ilustrações será uma constante desde os primeiros anos do século XX, especialmente nos anos 30. Consta da edição do Diario de Pernambuco do dia 30 de abril de 1933, na página 03 o seguinte trecho:
“Nos últimos dias da inscrição, apareceu no Tribunal eleitoral uma legenda de candidato. O desembargador Lacerda de Almeida leu, limpou os óculos, tornou a ler e passou ao dr. Domingos Vieira. Este lançou a vista no papel, esfregou os olhos e tornou a ler. Tratava-se de candidatura feminina. A legenda era: Segura esta mulher… Consta que fora mandada registrar por instigações do sr. João Cleofas, que está temendo certa cabala em Santo Antão da Vitoria…”
Padrões machistas como os exemplos acima foram grotescamente disseminados como uma ofensiva a algo inevitável e impossível de conter: a luta pelo direito a emancipação política das mulheres. Luta essa que Almerinda vai incorporar a sua vida como visão de mundo.
A década de 30 é marcada pela luta feminista pelo direito ao voto no Brasil, ecos de uma onda mundial, que já havia se propagado através dos movimentos sufragistas, a exemplo dos EUA. Almerinda estava nessa luta. E não só, seu pensamento horizontal e sofisticado sugeria uma capilarização da ocupação feminina nos espaços de poder, sendo a mulher protagonista de todas as etapas deste processo. Em outras palavras: era preciso votar e ser votada, seja na gestão pública ou na representação das classes trabalhadoras. Convencida por Berta Lutz, lançou-se para presidência do Sindicato das Datilógrafas e Taquígrafas e sim, foi eleita. Na mesma época, em 1933, irá exercer o seu direito como cidadã, sendo a única mulher e negra a votar na Assembleia Nacional Constituinte entre os 270 delegados eleitores. Em 1934 candidatou-se ao cargo eletivo de deputada federal com pautas voltadas para a defesa de um Estado e educação laicos, regulamentação do divórcio, liberdade de pensamento e amparo legal a todas as classes trabalhadoras, mas não conseguiu se eleger.
A partir da década de 40 passou a se dedicar à escrita e a lecionar, como professora do departamento de educação da prefeitura do Rio de Janeiro. Em 1942 lança o livro Zumbi, sua obra mais conhecida. Nas artes ainda trabalhou com teatro e poesia. Na década de 50 atuou como jornalista em O Dia, ajudando a fundar a Comissão de apoio à Conferência de Mulheres Trabalhadoras, na Associação Brasileira de Imprensa. Durante a ditadura militar, na década de 60, Almerinda foi perseguida por ser considerada subversiva pelo regime, sendo sumariamente demitida, era funcionária pública e exercia o cargo de escrevente.
Em 14 de dezembro de 1975 escreveu uma coluna para o Jornal A Província do Pará intitulada “Escreva-se a História” em que relata em primeira pessoa seu testemunho para fazer valer os direitos das mulheres: “Minha contribuição é oral. É tradição. Aqui, agora, a escrevo para fazer-me ouvir. Invoco para mim a afirmação do poeta: ‘E se alguém duvidava do que ele contava, tornava, prudente: Meninos, eu vi’. Sim , eu sou uma testemunha da história, como, aliás, todo aquele que vive conscientemente a sua época”. Almerinda faleceu em 1992, em São Paulo. Difícil restringir Almerinda a um único título para justificar qual o seu maior legado, quanto maior a imersão para descobrir sua história maior é a possibilidade de encontrar novas camadas de alguém verdadeiramente múltipla. Talvez seu maior legado tenha sido existir. Obrigada por isso, Almerinda.
Ecos de uma luta – entrevista com Izabel Santos
A emancipação feminina e seu pleno direito de existir e a exercer direitos básicos, como o voto, não termina com a luta empreendida por tantas mulheres históricas e anônimas. É constante e não retrocede. A plataforma Afrontosas ouviu Izabel Santos, coordenadora geral do Centro das Mulheres do Cabo, entidade pernambucana da sociedade civil que luta pela defesa das mulheres desde 1984.
AFRONTOSAS – Em quase um século de emancipação do voto feminino o que considera você mais potente nesse processo e, por outro lado, o que ainda é desafiante para as mulheres em relação a esse direito?
IZABEL SANTOS – A grande potencialidade deste século é a inserção das mulheres em todas as frentes de luta. Nós mulheres estamos resistindo de muitas formas: estamos organizadas em clubes de mães, associações, comunidades de base, em movimentos contra o custo de vida e por políticas públicas. Estamos nos movimentos, nos partidos e nos sindicatos. Desafiamos os papéis tradicionalmente atribuídos a nós de sermos “belas, recatadas e do lar” e nos inserimos em todos os lugares da sociedade. Criamos grupos e nos fortalecemos para ocupar os vários lugares. Mas o que ainda é desafiante para nós mulheres é justamente a dificuldade de ocuparmos mais espaços de poder. Estamos nos esforçando, mas ainda é muito incipiente nossa representatividade, nossa ocupação dos lugares nos parlamentos, nos cargos de chefia, na gestão das políticas públicas. Mesmo atuantes as mulheres se depararam com barreiras dentro das organizações e dos partidos e não conseguem apoio necessários para disputar espaços em páreo de igualdade com os homens. As desigualdades de gênero estão estruturadas na sociedade, e ainda precisa de muita desconstrução para alcançarmos maior representatividade, principalmente na política.
AFRONTOSAS – Como as ações do Centro das Mulheres do Cabo (CMC) contribuem no processo de fortalecimento da consciência política das mulheres?
IZABEL SANTOS – O Centro das Mulheres do Cabo tem feito um grande investimento na formação política das mulheres. Através dos cursos da Escola Feminista, temos direcionado os processos formativos para vários grupos de mulheres. Mulheres gestoras, mulheres que desejam ser candidatas mulheres lideranças, mulheres que atuam nas políticas públicas de gênero, e os resultados têm sido bastante satisfatórios. A descoberta do feminismo como um movimento político que pleiteia a igualdade bate muito forte nas mulheres, que a partir dos cursos se abrem para uma consciência da necessidade de se organizarem, de lutarem por direitos, de não aceitarem as desigualdades, as violências, esse curso tem sido nosso carro chefe na formação política desde 2007. A cada ano realizamos um curso, e a diversidade de mulheres que já passaram por este processo vem só aumentando, inclusive mulheres jovens. Para além da escola feminista, temos as oficinas, rodas de cuidado, rodas de diálogo, rodas de terapia comunitária, todas estas ações visam fortalecer politicamente as mulheres, na luta por direitos, por políticas públicas e colaborar com seus modos de organização.
AFRONTOSAS- Como as questões de raça, etnia, classe social e geracionalidade influenciam o direito ao voto das mulheres?
IZABEL SANTOS – Sabemos que nós mulheres somos 52% de eleitoras, no entanto apenas 15% estão hoje ocupando espaços nos parlamentos. Desse quantitativo, as mulheres negras não chegam a 5% e as mulheres jovens não chegam a 3%. Esses números comprovam que há um hiato em relação ao voto das mulheres. Nós não estamos votando nas outras, e por isso essa grande desigualdade. Ainda precisamos de mais investimentos na formação política das mulheres pretas, pobres e periféricas, que estão se virando para dá conta das várias atividades, e muitas delas são mães solo, por isso fica mais difícil de alcançar, pois não têm tempo. Há também uma grande prevalência destas mulheres dentro das igrejas, tendo acesso a posturas conservadoras e fundamentalistas, o que dificulta também quebrar algumas resistências. A carência financeira, a ausência de políticas públicas nas comunidades periféricas, a ameaça das drogas rondando seus filhos e filhas também é desestimulante, deixam as mulheres desacreditadas dos políticos e muitas delas não levam a sério a importância do voto em outras mulheres, achando que todas/os “calçam 40”. Mas nós não desistimos, e pouco a pouco estamos conscientizando, mostrando a importância de termos mais mulheres que nos representam e só desta maneira poderemos mudar os contextos de descaso com a vida das pessoas mais pobres. Com a juventude também há um investimento. O CMC tem levado sua ação para as comunidades, para as escolas. Investimos na organização das juventudes, empoderamos as meninas e as adolescentes, mostramos que podem ser protagonistas do futuro. Pouco a pouco este processo têm mostrado que estamos no rumo certo e que esta nova geração irá dar continuidade as nossas lutas e retroalimentar o movimento de mulheres e o movimento feminista, para que nós mulheres possamos ocupar todos os espaços em páreo de igualdade na sociedade.