Texto: Lenne Ferreira/Cendhec
Filha de Josélia e Antônio, Patrícia Ferreira é moradora de um dos bairros mais antigos do Recife, a Bomba do Hemetério, que começou a se formar na segunda metade do século XIX. É de lá que ela parte todos os dias em direção à Feira de Afogados, Zona Oeste do Recife, onde atua há mais de 20 anos. Antes das 4h da manhã, Patrícia já está de pé para começar a rotina de trabalho que já conhece desde a adolescência. Assim como milhões de brasileiras (os), ela precisou deixar a escola ainda na adolescência para ajudar a manter as despesas de casa.
“Eu queria muito conciliar meus estudos, mas não consegui porque eu acordava muito cedo e largava muito tarde”, relembra Patrícia, que tem 44 anos. A trajetória de vida da feirante é narrada por ela mesma no curta documentário “Marcas de uma vida”, produzido e roteirizado pela sua irmã, a pedagoga do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), Paula Ferreira. No vídeo, ela entrevista Patrícia para entender os impactos da falta de Educação no percurso de sua história que, embora particular, encontra pontos em comum com a história de outras mulheres negras que vivem em áreas periféricas.
“Eu pensei que queria muito visibilizar a minha irmã que é uma potência, mas que sempre esteve no mundo da invisibilidade assim como outras mulheres negras. Ela é uma referência para mim e eu não tinha dúvida que sua história serviria como referência para outras mulheres também”, comenta a pedagoga, que atua no projeto “Na Trilha da Educação: Gênero e Políticas Públicas para meninas”, apoiado pelo Fundo Malala.
Patrícia representa mais um número dentro das estatísticas sobre evasão escolar no país, que está relacionada com a desigualdade social e negações de direitos básicos. O racismo estrutural, que produz a necessidade de geração de renda para subsistência, é um dos fatores determinantes desse contexto. Uma pesquisa realizada em 2018 mostrou que, no Brasil, na época, havia mais de 1,7 milhão de meninas e mulheres de 15 a 29 anos que não completaram o ensino médio. Elas representavam 26% do total de jovens dessa faixa etária que não concluíram o segundo grau e não voltaram a estudar. Os dados foram levantados pelo Instituto Unibanco, a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE (Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística), referente a 2015.
“Foi um impacto muito grande na minha vida porque eu tinha sonhos e é muito ruim quando a gente vê que não vamos conseguir realizar”, desabafou no vídeo. Além da responsabilidade financeira, uma gravidez não programada também interrompeu o retorno aos estudos. “Naquela época, se eu tivesse tido o apoio da escola, um psicólogo para aconselhar, teria sido diferente. Na época eu me sentia culpada”, comenta Patrícia, que faz uma avaliação crítica sobre o contexto atual. “ Hoje, eu sinto que o estudo muita falta e tenho certeza que o que eu passei tem muitas meninas passando ainda”.
As consequências da falta de educação na vida de uma mulher negra são sentidas em longo prazo e definem o seu lugar no mundo, um lugar constantemente subalterno, de salários baixos e quase sempre invisibilizado. “Sem dúvida, a falta de educação na vida dela até hoje tem consequências. Estamos vivendo o contexto de uma pandemia que todos os dados apontam para o quanto a vida das mulheres negras têm sido mais precarizadas e impactadas pela pobreza e são essas mulheres que estão na base da pirâmide social”, comenta Paula, que foi a primeira da sua família a concluir o curso superior. “Para minha família, ter um ensino médio já era muito, entrar na faculdade já era o ápice do ápice. Hoje eu sou uma referencia para a família toda. Mas eu não quero ser a única referência”, conta.
No documentário, a pedagoga acompanhou a rotina de Patrícia desde a saída de casa até chegar ao seu posto de trabalho, na Feira de Afogados, onde ela comercializa coco e conta, entre um e outro cliente, que seu sonho era ter se tornado médica. “Eu sinto falta dos meus estudos, perdi muitas oportunidades”. A realização pessoal da feirante veio por meio da conclusão dos estudos do seu filho único.
“Sem sombra de dúvida falar da minha irmã é falar de mim também. Foi bem difícil pensar nesse roteiro, porque o tempo todo era sobre a nossa história, que teve uma estrutura familiar muito violenta. O perverso nisso é que ela passou anos se culpabilizando. Trazer isso à memória foi muito duro pra mim. São muitas dores, mas também muitas conquistas”.
O vídeo é só o ponta pé inicial de uma série que Paula pensa em continuar produzindo a partir de trocas com outras mulheres periféricas. Como educadora, ela afirma que trazer essas realidades à tona gera identificação em outras pessoas com vivências semelhantes. O matéria já tem sido usado por professoras em salas de aula e está disponível no canal no YouTube no Cendhec. Assista na íntegra: